O que mudou em relação ao trabalho dos catadores de lixo de Porto Alegre a partir da implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, segundo Antônio Cechin, em entrevista concedia por e-mail à IHU On-Line, foi que os catadores foram os primeiros atores a reconhecer um valor econômico e ambiental aos resíduos e em fazê-los voltar ao processo produtivo. “Para muitos, é a única possibilidade de renda e sobrevivência. Através da organização de associações e cooperativas, estão avançando na luta por políticas públicas que reconheçam e valorizem a atividade como profissão. Estão avançando em processos e ampliando sua inserção na cadeia produtiva para gerar renda digna”, diz. Para ele, os principais desafios da gestão integrada dos resíduos sólidos recicláveis são: a separação dos resíduos onde são gerados; a coleta seletiva feira por cooperativas ou associações; e a destinação adequada de cada tipo de resíduo.
Antônio Cechin é irmão marista, graduado em Letras Clássicas (grego, latim e português) e em Ciências Jurídicas e Sociais. Atualmente, é agente de Pastoral em diversas periferias da região metropolitana de Porto Alegre, assessor de Comunidades Eclesiais de Base do Rio Grande do Sul, dos catadores e recicladores. Desempenha ainda a função de coordenador do Comitê Sepé Tiaraju e da Pastoral da Ecologia do Regional Sul-3 da CNBB. Escreveu Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação (Porto Alegre: Estef, 2010). Publica, periodicamente, os seus artigos nasNotícias do Dia do sítio do IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De modo geral, como a questão do lixo é tratada no Rio Grande do Sul?
Antônio Cechin – Como o problema do lixo é um assunto recorrente no Rio Grande do Sul, que retorna sempre de novo, particularmente através da mídia, também porque ao falar dele sempre se fala no Povo da Rua, é um dos principais protagonistas em matéria de despoluição, tomo a liberdade de começar de quando tudo se iniciou no nosso Estado, que foi pioneiro na coleta de resíduos sólidos.
O primeiro alerta em relação ao problema do lixo e do fenômeno da poluição na natureza, no Rio Grande do Sul, foi dado pelo nosso grande ecologista José Lutzemberger . Não contente com as fortes denúncias que fazia, nosso popular Lutz começou imediatamente a tomar iniciativas no sentido de introduzir práticas tendentes a minimizar os males que verberava com seus discursos contundentes.
Em algum edifício de apartamentos, Lutz iniciou a educação dos inquilinos no sentido de separar o lixo seco do lixo orgânico, apartamento por apartamento. O seco era encaminhado a alguma família pobre a fim de realizar a triagem e possível venda dos materiais, e o lixo orgânico, em saco separado, continuava à disposição do DMLU para a coleta destinada a descarte no grande lixão a céu aberto de Porto Alegre.
Os três R
A Igreja das Comunidades Eclesiais de Base ou da Teologia da Libertação, no início da década de 1980, dentro da radicalização de sua opção pelos pobres, na Ilha Grande dos Marinheiros, junto ao Delta do Jacuí, em Porto Alegre, criou o primeiro coletivo de trabalho com catadores dentro da filosofia dos três R, estabelecida pelo nosso mestre em ecologia Lutzemberger: reduzir, reutilizar, reciclar. Reduzir a quantidade de lixo, reutilizar tudo quanto for possível para confecção de artesanato e outras utilidades e reciclar tudo quanto fosse vendável como matéria-prima de novos objetos para o consumo. Lutz havia trabalhado indivíduos para a “separação caseira”. A Igreja da Libertação enfocou o problema de maneira comunitária como convém ao Projeto que Jesus trouxe de junto do Pai: o Projeto do Reino de Deus que é comunitário por excelência.
A unidade primeira de Catadores da Ilha Grande espalhou-se depois em mais de 100 outras unidades por todo o estado do Rio Grande do Sul, quase todas originadas de Comunidades Eclesiais de Base. Foi criada então uma federação que englobasse todos os coletivos estaduais com o objetivo de se tornar um movimento popular.
No início do terceiro milênio – ano 2000 – a Federação das Associações de Recicladores do Rio Grande do Sul – FARRGS seguiu para Brasília onde, por obra e graça das Comunidades Eclesiais de Base, mais alguns outros coletivos de diferentes estados do Brasil, foi criado o Movimento Nacional de Catadores – MNC.
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural
Com um grupo de amigos, Lutzemberger fundou a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – Agapan, na intenção de se tornar um movimento social e popular com finalidades preservacionistas e de caráter ecológico.
Hoje, 50 anos passados desde os inícios da Agapan, a associação mais autorizada a falar em nome de todos os rio-grandenses, existe uma grande preocupação por parte da população e dos administradores públicos em geral, referente à coleta dos resíduos. Todos até, com suma rapidez, querem se livrar dos seus resíduos. O que prevalece mesmo é a preocupação estética em relação ao lixo, isto é, de querer se livrar dos rejeitos o mais depressa possível e para lugares os mais longínquos possíveis. No estado, ainda temos cerca de duas dezenas de grandes lixões a céu aberto. Diversas cidades já fazem coleta seletiva, a grande maioria das pessoas ignora para onde tais descartes são levados e como são tratados. Ainda existem muitos depósitos clandestinos.
Diversas cidades já fazem coleta seletiva e a grande maioria dos centros de triagem são operados pelas próprias cooperativas ou associações de recicladores, com a desonrosa exceção da capital Porto Alegre, que, de oito anos para cá, deixou de fazer jus ao seu pioneirismo nesta matéria.
IHU On-Line – Há uma preocupação ambiental e sanitária?
Antônio Cechin – A preocupação é mais de caráter sanitário do que ambiental. Os recursos são investidos principalmente em limpeza urbana, coleta e aterro. Há pouquíssimos investimentos em programas de educação ambiental para não geração ou redução na quantidade, na reutilização e na reciclagem dos materiais descartados. Minha impressão é que, pelo fato de como Estado termos perdido nosso pioneirismo, como somos parlapatões sempre que se trata de contar vantagens, por aqui perdemos a vontade de pesquisar sobre o assunto e, naturalmente, também de divulgar dados que nos comprometeriam.
Toda vez que se quer números, estatísticas, comparações, etc., sempre é em termos de Brasil. Assim, em questão de reciclagem nosso país, com um potencial de 8 bilhões por ano, processa, no máximo, 3 bilhões, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea. Se os objetivos do Plano Nacional de Resíduos Sólidos forem atingidos, muda tudo: a qualidade do líquido que as empresas captam para tratar a água que nós bebemos e a qualidade do ar nas cidades que têm lixão – afirma o gerente do Departamento Urbano do Ministério do Meio Ambiente, Ronaldo Hipólito.
IHU On-Line – Quais são hoje as principais políticas públicas adotadas no Rio Grande do Sul para tratar a questão do lixo? Nesse sentido, que desafios aponta para que o tratamento do lixo seja mais eficiente?
Antônio Cechin – As principais políticas públicas são:
* A coleta e a disposição final dos resíduos nos aterros.
* A coleta seletiva. Em alguns municípios, as cooperativas ou associações de catadores são contratadas para fazer a coleta seletiva de acordo com o Plano Nacional de Resíduos Sólidos do proposto pelo então governo Lula.
* Os centros de triagem gerando trabalho e renda.
* Na vontade do operário metalúrgico e ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, que urgiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos 20 anos, engavetada no parlamento nacional, os coletivos de catadores do Brasil devem, aos poucos, se apropriar de todas as etapas da cadeia de beneficiamento dos resíduos: coleta seletiva, triagem, prensagem, venda in natura ou em fardos, artesanato, industrialização para a fabricação de novos objetos, etc.
Os desafios que aí estão:
* Reforço na educação ambiental.
* Ampliar estruturas de coleta seletiva envolvendo os catadores com remuneração através de contratos. O normal nos coletivos de catadores é selecionar ou triar somente aquilo que se consegue vender. Ora, amanhã ou depois surgirão certamente novas fábricas absorvendo matérias primas que hoje ainda não são selecionadas, como, aliás, prevê a lei nacional com as chamadas políticas reversas. Então, nos perguntamos: Não seria o caso de os coletivos de reciclagem triarem absolutamente todos os resíduos sólidos e as prefeituras pagarem aos catadores os fardos de materiais selecionados e enfardados que possam ser estocados nos galpões e que hoje não têm venda? Não seria justo os catadores gastarem tempo e energia separando materiais pelos quais não tivessem as energias despendidas num trabalho pelo qual não fossem remunerados.
* Melhorias nas estruturas de trabalho e nas instalações sanitárias dos recicladores.
* Implantação de sistemas de beneficiamento de plásticos e outros materiais para qualificação e agregação de valor.
* Criação de sistemas de compostagem para os resíduos orgânicos – evitaria gastos com transporte e aterramento.
IHU On-Line – Quantos municípios do Rio Grande do Sul ainda não possuem coleta seletiva? Quais são as dificuldades para aderir à coleta?
Antônio Cechin – É difícil ter um dado atualizado de quantos municípios realizam coleta seletiva. O que deve interessar mesmo é o quanto é coletado nos municípios que dizem ter coleta seletiva. Em muitos casos, a eficiência é baixa. O que vem afirmado nos debates em torno da questão é que apenas 10% dos resíduos são destinados para a reciclagem.
A principal dificuldade é que os administradores ou gestores avaliam mais os custos econômicos sempre. Não levam em conta a questão ambiental e social. Quando um município implanta coleta seletiva, gera uma mobilização da população, que traz muitos ganhos de cidadania e outros cuidados ambientais, inclusive com a situação dos catadores.
Coleta seletiva em igrejas e associações
Em Porto Alegre, foram a sociedade civil e a Igreja que começaram com coleta seletiva em igrejas e associações. Os consumidores como produtores de resíduos sólidos e agora separadores nas moradias de lixo seco entregavam alegremente seus resíduos sólidos diretamente aos coletores-catadores das unidades de triagem, até pela satisfação de estarem
ajudando pessoas pobres em suas lutas por sobrevivência. Atitude completamente diferente dos produtores de resíduos, constatamos depois quando a prefeitura decidiu fazer a coleta oficial em toda a cidade. Já não entregavam com tanta satisfação como antes, quando era diretamente para a gente pobre. Até houve diminuição de entregas sob o argumento de que agora era a prefeitura e seus funcionários que os recebiam. Este fato nos tornou convictos de que a lei do Lula está correta dentro da vontade de tudo fazer através dos próprios catadores, desde a coleta até a venda final dos materiais in natura ou beneficiados.
IHU On-Line – Quais são hoje os principais programas, projetos e ações desenvolvidos em Porto Alegre para alcançar as metas previstas no Plano Nacional de Resíduos Sólidos?
Antônio Cechin – A coleta seletiva foi o primeiro programa desenvolvido em Porto Alegre pela prefeitura, logo que o Partido dos Trabalhadores (PT) venceu as eleições na capital através do candidato Olívio Dutra, que, também em seu governo, passou a apoiar a criação de outras unidades de catadores, construindo vários galpões de trabalho, baseado na experiência-piloto realizada pelas Comunidades Eclesiais de Base. A sociedade civil junto com a Igreja Católica criou uma política pública para beneficiar catadores. O PT foi o primeiro partido no Estado a dar apoio a esta iniciativa dando o segundo passo, transformando-a em política de governo. Outros governos de outros partidos pós-PT não cresceram para o terceiro passo no sentido de transformar a política pública em política de governo com leis próprias, com direito a ter orçamento especial etc. Foi realmente por causa do governo federal, através do então presidente Lula, que hoje os catadores têm as melhores leis do mundo em favor da sua categoria de trabalhadores-catadores.
IHU On-Line – A partir do Plano Nacional de Resíduos Sólidos, já é possível apontar melhorias em relação ao destino dado aos resíduos sólidos no país?
Antônio Cechin – O debate em torno deste assunto está em cada canto deste país. A política nacional estabeleceu prazos e está havendo uma forte mobilização dos gestores e da sociedade para encontrar soluções adequadas. Há debate em torno das tecnologias que estão sendo apresentadas e sobre a inclusão dos catadores presentes em praticamente todas as cidades porque, de uma situação de maioria da população em estado de pobreza, hoje, pós-governo Lula, embora tenhamos tido o melhor presidente em 500 anos de Brasil, nosso povo está somente um pouco menos pobre do que era antes, porém continuamos ainda a ser um país pobre.
IHU On-Line – O que mudou em relação ao trabalho dos catadores de lixo de Porto Alegre a partir da implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos? Que relação os catadores estabelecem com o lixo?
Antônio Cechin – Os catadores foram os primeiros atores a reconhecer um valor econômico e ambiental aos resíduos e em fazê-los voltar ao processo produtivo. Para muitos, é a única possibilidade de renda e sobrevivência. Através da organização de associações e cooperativas, estão avançando na luta por políticas públicas que reconheçam e valorizem a atividade como profissão. Estão avançando em processos e ampliando sua inserção na cadeia produtiva para gerar renda digna.
IHU On-Line – De que forma as cooperativas que devem gerir os resíduos sólidos estão atuando?
Antônio Cechin – As cooperativas e associações, em sua maioria, realizam a triagem em galpões ou usinas cedidas pelas prefeituras. De modo geral, as condições de trabalho e espaços de convivência apresentam deficiências e geram baixa produtividade. A gestão de um empreendimento coletivo é um enorme desafio numa sociedade onde os valores capitalistas prevalecem. Os integrantes destas organizações carecem muito de escolaridade e conhecimentos necessários para a gestão do coletivo. A renda em geral ainda fica abaixo de um salário mínimo e provoca muita rotatividade. São necessárias outras políticas públicas de apoio para resolver questões como habitação, educação, saúde, creches, que beneficiem as mulheres, que são a grande maioria nesta atividade.
Existem situações em que as associações ou cooperativas têm o ônus da coleta de materiais com equipamentos precários (tração humana) e sem nenhum apoio do município. Mas já existem diversos casos em que as cooperativas passaram a ser contratadas para fazer a coleta seletiva e que têm atingido índices muito bons. Algumas cooperativas também contam com estrutura e conhecimentos para realizarem beneficiamento de plásticos, apresentando uma matéria-prima mais qualificada e pronta para ser transformada em novos produtos. Isso tem melhorado a renda destes trabalhadores. As universidades têm um compromisso muito importante de disponibilizar conhecimentos e introdução de tecnologias simples que possam tornar o trabalho mais fácil e contribuir para melhoria da renda.
IHU On-Line – Que porcentagem do lixo da capital tem sido reciclado? Seria possível ampliar a reciclagem?
Antônio Cechin – Se somarmos aquilo que os carrinheiros, que coletam individualmente com a coleta seletiva por parte da prefeitura, dizem, atingiremos um máximo de 10% de todos os resíduos sólidos recicláveis na capital, pela quantidade de carrinheiros que circulam pela cidade e pelos apelos que recebemos por parte de párocos com trabalhos sociais, especialmente sopões ou refeições comunitárias para os pobres do entorno das igrejas. Em diversas dessas paróquias que frequentamos, pelo menos um terço das pessoas que acorrem para se alimentar é de carrinheiros. Poderíamos, em pouco tempo, dobrar o número de galpões de triagem que atualmente somam 18 unidades em Porto Alegre. Com a maior facilidade, poderíamos ir a 36 ou 40 unidades no total. E muito rapidamente, se ocupássemos elefantes brancos para nossa façanha.
Aliás, essas ocupações foram sumamente aprovadas por Santo Tomás de Aquino, o filósofo e teólogo maior de toda a história da Igreja e que viveu em plena Idade Média. Diz ele: quando uma pessoa ou um grupo de pessoas são tão pobres e carentes a ponto de não poderem satisfazer suas necessidades básicas, nesse momento “tudo, absolutamente tudo” no mundo, passa a ser comum, isto é, de todos. Esses famintos, doentes, sem casa etc. têm todo o direito de ir ali onde tem comida nos armazéns ou nas geladeiras dentro das moradias, pegar comida e se alimentar a fim de não morrer de fome. Podem, para descansar e dormir, procurar e ocupar um local qualquer, um abrigo, uma cama para acabar com o sono, e assim por diante.
Resíduos sólidos limpos
Em meu sentir junto do povo, se as responsabilidades pelos resíduos sólidos fossem universais, isto é, de todos os que deveriam se envolver com eles, desde os produtores de lixo ou consumidores, as fábricas de objetos para o consumo, os lojistas, etc. poderíamos ter resíduos sólidos inteiramente limpos. Se isso acontecesse, em Porto Alegre poderíamos ter uma unidade, em cada bairro ou vila, de lixo inteiramente limpo, sem absolutamente cheiro algum, fazendo com que o catador separasse com maior rapidez, obtendo ganhos dobrados, sentindo-se emocionalmente cidadão em plenitude, trabalhando em pé de igualdade com todos os trabalhadores do país, com dignidade e autoestima completas. Pelo menos duas dessas unidades poderiam funcionar junto à Rua da Praia, que é o centro comercial da cidade.
IHU On-Line – Quais são os desafios da gestão integrada dos resíduos sólidos recicláveis?
Antônio Cechin – Os principais desafios são: a separação dos resíduos onde são gerados; a coleta seletiva feira por cooperativas ou associações; e a destinação adequada de cada tipo de resíduo.
IHU On-Line – O quê, lixo e a destinação dada a ele, revelam sobre a organização e a estrutura da nossa sociedade?
Antônio Cechin – Revela o consumismo, a concentração de renda, o desperdício de recursos, a doença do planeta Terra hoje clamando aos humanos que o estão asfixiando. Tudo isso gera a magnitude do desequilíbrio ambiental.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Antônio Cechin – Depois de muita luta, o país conquistou uma legislação muito importante sobre resíduos, principalmente a inclusão dos catadores, mais de um milhão em todo o país e pouquíssimos organizados. Agora se impõe um esforço de todos para implementar ações concretas e que exigem mudanças de comportamento. Necessitamos de uma fiscalização eficiente a fim de que as metas a serem alcançadas não caiam no esquecimento.