segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

CARTA DE VALÉRIO FABRIS AOS SEUS FAMILIARES


Caríssimas e caríssimos familiares:

Eu me senti especialmente feliz quando, agora há pouco, abri o Facebook e li uma postagem do Pedro Tavares, colega do Bernardo, em referência a algumas intervenções que realizei há bastante tempo, em Florianópolis (1), estimulando os adolescentes de então -  Bernardo (2) e os amigos Pedro Tavares e Ivo Müller  -  a investirem na formação pessoal, no sentido mais amplo, incluindo-se os campos da cultura e de todas as atividades profissionais.  Paula (3) acabou, nesse ambiente, se enveredando para o jornalismo, como designer da Veja Rio, aliás de muito talento e refinamento técnico, com uma trajetória ascendente, o que significa uma perspectiva profissional das mais promissoras, no âmbito da Editora Abril e do mercado em geral.   

Pedro Tavares tornou-se uma das referências brasileiras na área da psicanálise e da literatura, a partir da USP.  Ivo Müller, por sua vez, firmou-se como consagrado ator de teatro, em São Paulo.  Bernardo revelou-se um músico de altíssima qualidade, tanto na interpretação quanto na composição e arranjo, já obtendo muito reconhecimento em Minas, que é um concorrido território de grandes mestres da música popular.

Percebo que, em relação ao caso levantado pelo Pedro Tavares, apenas busquei alguma coerência com a história da família. Esse ‘espírito’ de harmonia e valorização do conhecimento foi disseminado pelos nossos pais, de um modo até mesmo mais aprofundado do que observou no grande conjunto dos diversos ramos dos Fabris e Giro, que também primavam, cada um a seu modo, pelos significados da união entre as pessoas e da transmissão do saber.    

Constato, com alegria, que se multiplicaram entre nós maravilhosos e bem-sucedidos exemplos, em todas as vertentes profissionais, como as de engenharia, nutrição, psicanálise, psiquiatria, química, pedagogia, decoração, música, direito, física, sociologia, informática, administração, biologia e assim por diante.  Mas o mérito da conquista profissional  fica invalidado se não houver uma sólida base de caráter e ética, atributos estes que – Graças a Deus! –  se generalizam em todo o nosso ambiente familiar.

E se há outra virtude extraordinária, fomentada pelos nossos pais (4), é a da liberdade de cada um, como as das opções de natureza política, resguardados os mais elevados princípios morais e éticos.  Nesse aspecto, nossos pais guiaram-se (é bom lembrar e circunstanciar isso) por uma ética cristã de raiz, em que a mensagem não estava na pregação, mas na atitude pessoal, discreta e silenciosa, sem a leitura da Bíblia ao pé da letra, portanto isenta do sectarismo fundamentalista, em uma religiosidade mais de atitudes do que de palavras. 

O recatado comportamento cristão deles coincidia em cheio com o evangelho segundo Mateus, que, no capítulo 6, parece estar descrevendo os dois.  Por exemplo, quando diz que, qualquer demonstração exterior dos gestos de caridade, de oração e de jejum é hipócrita, porque tudo isso tem de ser praticado no silêncio e no anonimato.  O gesto fala por si, porque fala a Deus.  Se qualquer dessas atitudes for tomada no sentido da exibição, diante dos olhos dos outros, a recompensa já terá sido dada, porque o prêmio se constitui em ser visto pelos outros.  

Leiam algumas citações do evangelho segundo Mateus. Vejam como conferem, tintim por tintim, com a nonna, o nonninho, o tio Segundo (5), todos os nossos tios, nossos pais.    

Como se deve dar esmolas - “Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens.  Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa.  Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita; para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará”.

Como se deve orar - “E, quando orardes, não serei como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens.  Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa.  Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.  E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios, porque presumem que pelo muito falar serão ouvidos.  Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais”.

Como jejuar - “Quando jejuardes, não vos mostrei contristados como os hipócritas; porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos homens que jejuam.  Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa.  Tu, porém, quando jejuares, unge a cabeça e lava o rosto, com o fim de não parecer aos homens que jejuas, e sim ao teu Pai, em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará”.

O meu propósito, ao citar Mateus, não é o de fazer uma pregação religiosa, porque isso contrariaria a essência do que pretendo exaltar.  Ou seja, que a ética de nossos pais é de tal ordem que, mesmo tendo sido eles investidos da mais profunda crença, não faziam da crença um exercício de proselitismo.  O estilo deles era o de um sermão sem palavras. Um sermão só de atitudes.  A quem papai dizia que ele rotineiramente levava frutas aos pobres que estavam internados na Santa Casa?  Ou que ia visitar os presos?  A resposta é: a ninguém.  E nonninho? Lia a Bíblia diariamente (as ‘Sagradas Escrituras’, como pausadamente dizia), mas não tinha o melhor apreço por padres ou pastores protestantes, principalmente os verborrágicos?   Nonninho até passaria por herege.  E, no entanto, foi um cristão profundo.

Cabe contar aqui um magnífico episódio há pouco tempo rememorado por Quinha (6). O ocorrido se liga à caixa de ferramentas (7) que papai guardou durante toda sua vida.   

Certo dia, apareceu lá no Mercado (8) um senhor acabado e maltrapilho.  Bastou que o homem o olhasse e lhe pronunciasse algumas poucas palavras para que papai logo o reconhecesse:

-  João Borges!

Como não se lembrar dele?  Foi quem lhe ensinou o ofício da marcenaria.

Na cena subsequente, ambos construíam uma casa de madeira no terreno do campinho (9).  João Borges já barbeado, de banho tomado, roupas limpas e passadas.

Semanalmente, papai levava a João Borges uma cesta básica. O velho mestre de ofícios permaneceu na casinha até o último de seus dias.


Quando “me congratulo como a minha própria pessoa’, como diria Miúdo (10), por ter orientado a moçada ao caminho do conhecimento, conforme a postagem do Pedro Tavares, eu estaria revelando uma contradição. Seria esta uma declaração explícita do meu narcisismo, em colisão com o estilo dos nossos pais e, por conseguinte, com o evangelho de Mateus.   Estaria eu alardeando, trombeteando as minhas ‘generosidades’.    

O que quero dizer é o que aqui digo: quando li a mensagem do Pedro Tavares, me conectei ao legado.   

Em síntese, vamos aos pontos:

Nada mais fiz do que todos nós cotidianamente fazemos.  E o que fazemos é um prosseguimento – com certeza nem tão primoroso – das atitudes de nossos pais diante da vida.

Então, o que pretendo, com esta mensagem, é conclamar a um nivelamento nosso em relação à história familiar.  E, ao chamar a atenção para o legado, a minha intenção é a de valorizá-lo e atualizá-lo. 

Papai soube agradecer a quem lhe deu o eixo e o prumo da vida. 

João Borges simboliza muita gente da história de papai, que começa (11) quando Giovanni Battista Fabris, 52 anos, e Teresa Casagrande, 31 anos, embarcaram no porto de Gênova, em 11 de novembro de 1879.

Abraços,

Valério

Belo Horizonte, 13/01/2013

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