Lula contou com a bonança de um capitalismo sem crise e com um Estado fortalecido e uma economia organizada. Porém, o aumento da renda dos trabalhadores com pouca qualificação parece estar no limite, o mesmo ocorrendo com as elevações do salário mínimo sem incremento de produtividade e com a ampliação do crédito
José Maurício Domingues
José Maurício Domingues
Em meados da década de 1980 começou o que se pode chamar de uma nova história do Brasil. Com a conclusão da "modernização conservadora" - baseada na aliança entre latifundiários e burguesia industrial -, o país se mostrava, à sua maneira, contemporâneo da modernidade que se afirmava planetariamente, ao mesmo tempo que uma verdadeira revolução democrática ocorria no país. Agora é o futuro que se põe como desafio, não a simples realização da modernidade.
Muitos desses elementos parecem ter se esgotado. Lula contou inicialmente com a bonança de um período de capitalismo sem crise e com um Estado fortalecido e uma economia organizada quando aquela veio. Contudo, o crescimento dos salários dos trabalhadores com pouca qualificação parece ter atingido seu limite, o mesmo ocorrendo com as elevações do salário mínimo sem aumento de produtividade e a ampliação do crédito para as camadas populares, com o governo Dilma recusando ao mesmo tempo qualquer suposto desequilíbrio em suas contas. O que seria cabível chamar de "keynesianismo dos pobres" pode ter batido em seu teto. Com o crescimento da economia, é provável ter ocorrido a ascensão de alguns setores populares à classe média, e alguns de seus antigos componentes melhoraram sua situação, sem que haja surgido contudo uma tão falada nova classe.
O desafio da universalização
Nem os governos Lula nem o Dilma avançaram para além de combater a pobreza com medidas focalizadas, que, ao mesmo tempo que subvertem o neoliberalismo, a ele se aliam ao recusar a definição de uma cidadania social universal. O Bolsa Família é a expressão principal disso, mas as políticas que respondem a demandas setoriais e dos movimentos sociais muitas vezes reproduzem essa abordagem, ainda que de maneira indireta. É o caso da política de cotas, raciais ou populares, em muitas áreas, permitindo ao governo escapar da questão da universalização de suas políticas sociais e educacionais. Sem dúvida, políticas voltadas para setores específicos, como as do MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário], são necessárias e inevitáveis. Mas não deveriam ser privilegiadas em detrimento de políticas universais, como a implantação do SUS, a universalização da política de renda mínima e o enfrentamento da questão-chave da tributação, que nem sequer foi aventada por Lula ou Dilma.
Com a economia travada até agora, há problemas sérios aí também. Isso ocorre apesar dos esforços do Ministério da Fazenda e mesmo da baixa forçada da taxa de juros, que podem dar frutos a médio e longo prazos, significando pela primeira vez um enfrentamento com o capital financeiro. Certo processo de desindustrialização está realmente em curso, mas uma alta contínua do câmbio não a deterá, sem falar nos problemas que a inflação causaria com um real depreciado. Tampouco os esforços governamentais em termos de inovação tecnológica têm resultados efetivamente relevantes. Com a crise mundial, as commoditiesnão conseguem manter o ritmo do crescimento e da geração de divisas, o que só não complica a balança comercial porque a importação de bens de capital se reduziu, dada a desaceleração da economia.
Enfim, a eleição de Lula e o acesso de amplas massas populares ao consumo promoveram uma revolução simbólica no Brasil, acentuando a igualdade social no plano cultural. Isso é um grande incômodo para as classes médias consolidadas, com os ricos manipulando esse mal-estar para impulsionar sua política neoconservadora. Mas segue havendo uma fetichização do mercado, reforçada pelo neoliberalismo, e a santificação do consumo, com a ênfase na suposta emergência de uma classe média que poderia comprar bens duráveis e, sobretudo, serviços sociais no mercado (aposentadoria, saúde, educação), mantendo-se as políticas focalizadas de combate à pobreza e o governo distante do enfrentamento da desigualdade social e de políticas sociais universais. Não foi revertida a privatização da vida que se afirmou nas últimas décadas na ausência de grandes mobilizações sociais, salvo no que diz respeito à religião, cujo cunho individualista e aquisitivo é forte. Muito disso está inclusive incorporado ao discurso do governo e se conjuga a uma noção de privatização da vida em que o público se mostra residual, apesar de haver aumentado o papel do Estado na economia e na política social.
Os governos Lula e Dilma vêm realizando transformações de peso na sociedade brasileira, mas é preciso considerar os limites de sua agenda, seu cumprimento parcial e as disputas dentro do próprio projeto. Estas apareciam de maneira mais direta no que se refere à política econômica, que fez certa inflexão à esquerda, descolando-se do capital financeiro. A dívida interna não negociada e a renúncia a tocar a questão tributária, privando-se o Estado de recursos para realizar investimentos em infraestrutura, impulsionam por outro lado a política econômica a apostar em uma privatização bastante acentuada, ainda que encoberta com uma retórica desenvolvimentista. A essas questões se soma a do meio ambiente, mais ou menos equacionada, para o bem ou para o mal, com a votação do Código Florestal. E a da democracia, especialmente no que toca aos meios de comunicação, que, apesar da irritação de Lula e do PT, parece estar totalmente fora da pauta política. Mas é na política social que os aspectos perversos do projeto se revelam hoje de maneira mais clara.
Além de haver sido incorporado ao discurso de Dilma, o elogio à existência e à suposta ampliação da classe média significa que um dos núcleos duros do governo joga em um capitalismo voltado para o consumo privado, e não coletivo; não para um bem-estar público, mas sim privatizado. Assim, se consolidariam o afastamento em relação a uma política de cunho universalista (o modelo de desenvolvimento privatista, calcado no consumo individual, não sendo questionado) e um sistema dual de bem-estar, mercantilizado para os ricos e remediados, residual e na prática formal ou informalmente focalizado para os pobres.
Em contrapartida, direitos universais, consumo coletivo e desmercantilização possível da força de trabalho se colocam, ou, antes, deveriam se colocar, na agenda. Trata-se de defender a esfera do público, de recuperar de fato a capacidade de investimento do Estado. Não há razão para restringir o consumo individual. Bens duráveis (geladeiras, micro-ondas, celulares, computadores e mesmo carros) e as possibilidades de lazer hoje típicas da classe média e dos ricos devem se tornar acessíveis à massa da população. Mas o que importa é criar condições para um consumo menos individualizado e um lazer menos privatizado, menos voltado para objetos materiais. Isso tem consequências políticas, culturais e ambientais. E deve engajar transversalmente o governo. O Brasil vem remando contra a maré da acumulação capitalista mundial, mitigando o padrão "flexível e polarizado" que prevalece há duas décadas, com uma ampliação modesta de seu mercado de consumo interno e a incorporação a ele de vastas massas de consumidores populares. Mas não há razão para seguir copiando, no que tange às classes médias em particular, o padrão consumista, individualista e carbonífero que marca a projeção global da cultura e do capital norte-americanos. Uma ênfase nos direitos, no público e no coletivo, parcialmente estatais, deve ser buscada, desde dentro do aparelho de Estado, dependendo dos projetos em disputa, e fora dele, com mobilizações sociais concretas. Além disso, saúde de qualidade, seguro-desemprego amplo, renda mínima, ampliação do ensino, público e em todos os níveis, são temas cruciais.
Uma novíssima história do Brasil
O que importa é garantir uma liberdade igual para todos e uma igualdade na liberdade que depende de recusarmos a construção de um Estado de bem-estar de caráter residual, que divida a sociedade em pobres e remediados. E a experimentação social deveria ser apoiada.
Uma reforma do imposto de renda e das demais taxas hoje regressivas é crucial para avançar nesse projeto. É preciso reformar o sistema de impostos, fazendo-o capaz de financiar serviços públicos de qualidade e atrair as classes médias, ganhando-as politicamente, desonerando o consumo básico e avançando na taxação não apenas das grandes fortunas, mas progressivamente na escala da renda, dos ganhos de capital e da herança. São temas duros e difíceis, que demandam lutas e mobilização. Crescer e distribuir os frutos do crescimento é relativamente fácil. Assim procedeu Lula. Distribuir forçando uma nova divisão da riqueza é muito mais conflituoso.
Mas para aumentar a igualdade social algo mais precisa ser feito. É necessário que os empregos oferecidos sejam de melhor qualidade, o que somente será alcançado com o fortalecimento da indústria. Simplesmente defendê-la por meio de um câmbio cada vez mais depreciado, trazendo inflação e problemas para o consumo popular, é, porém, má receita. É preciso aumentar a produtividade e ampliar ainda mais o mercado de consumo, aumentando os salários. O mesmo se aplica à nossa capacidade científica, tecnológica e de inovação. Mais democracia, em particular nos meios de comunicação, em si, por si e como impulsionadora desses processos, segue sendo imprescindível.
Isso nos permitiria colocar a questão ambiental em outro patamar, contraposta mais fortemente aos ruralistas e outros interesses, como os da mineração. A valorização de atividades ditas "tradicionais" e em princípio não predatórias, grandes reservas ambientais e a recusa a grandes projetos de desenvolvimento, bem como legislação avançada protecionista, são elementos que se destacam na agenda ambiental. É improvável, se o país crescer e ampliar sua intervenção sobre a natureza, que seja possível preservar o meio ambiente somente com essas estratégias defensivas. Inovações tecnológicas serão cada vez mais necessárias para conjugar desenvolvimento, preservação e reconstituição, recuperando-se possivelmente a temática do desenvolvimento sustentável (sensível ao antiextrativismo, sem fazê-lo absoluto).
Existe o risco de construção de um projeto alternativo, conservador, capaz de garantir a seu lado amplamente as classes médias e descolar setores do proletariado - operário e organizado, assim como do setor de serviços e desorganizado - em nome de aprofundar o privatismo, o consumismo e a dualização fragmentada do sistema de bem-estar brasileiro. Mas hoje a questão é em grande medida como resolver a tensão entre as alas mais à esquerda e mais à direita da coalizão de governo, e como, na sociedade de maneira mais ampla, se reafirma, enfraquece ou, oxalá, é superada a perspectiva individualista e "empreendedorista", mercantilizadora, consumista e predatória que é o legado duradouro e menos explícito, mas mais insidioso, do neoliberalismo. A vitória ao menos parcial da ala à esquerda do atual projeto abriria, aí sim, uma novíssima história do Brasil.
José Maurício Domingues é sociólogo, é professor do Iesp-Uerj. Seus últimos livros publicados são A América Latina e a modernidade contemporânea (2009), Desarrollo, periferia y semiperiferia en la tercera fase de la modernidad global (2012) e Global modernity, development and contemporary civilization (2012).
Ilustração: João Montanaro
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