Asscom/Sesa
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Bispo Lessa aprendeu pintura em tela no CAPS Cidade e hoje compartilha o conhecimento com outros pacientes. |
Estar em grupo, cantar, desenvolver trabalhos
manuais, fazer passeios ao ar livre, visitar
exposições de arte. Atividades como essas fazem
parte de uma perspectiva humanizada de
tratamento de pacientes com transtornos psíquicos.
Dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), os
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são
os principais fomentadores dessas práticas,
que são fundamentais no processo de inclusão
social dessas pessoas.
De acordo com a coordenadora do CAPS Cidade
– vinculado à Secretaria de Estado da Saúde
(Sesa) –, Ana Maria Domingues Carvalho, esses
mecanismos terapêuticos possibilitam ao
paciente descobrir novas potencialidades
e possibilidades, reafirmam seu compromisso
com suas atividades diárias e viabilizam o resgate de sua autoestima.
“O paciente se torna menos dependente da família e da equipe assistencial e passa a
ter mais autonomia, tornando-se protagonista de sua trajetória. Essa condição gera
um bem-estar que contribui para melhorar o convívio social, além de evitar e
reduzir as internações por descompensação do quadro psiquiátrico”, detalha Ana Maria.
Elizabeth, Fátima, Lourdes e Bispo fazem parte do coral Cantando a Cidade, do
CAPS Cidade, junto com outros pacientes e funcionários. Com o grupo, eles ensaiam
toda semana e vira e mexe fazem apresentações. As últimas aconteceram na
última semana. Foram quatro apresentações em espaços públicos da Grande Vitória
em alusão ao Dia Nacional de Luta Antimanicomial, celebrado em 18 de maio.
“Pintura em tela, pintura em pano de prato, bordado... Aprendemos tudo aqui.
Eu gosto das atividades do CAPS. A gente fica mais alegre, esquece as ideias
negativas que passam pela cabeça”, diz Elizabeth Lacerda Ribeiro, 58 anos, que
desde a infância passou por longos períodos de internação. Beth, que morava
com a mãe, continuou na mesma casa depois que ela faleceu. É no mesmo
quintal da família, mas ela mora sozinha, algo que representa bem sua independência.
Além de cantar no coral, Bispo Lessa da Silva, 58 anos, ensina pintura em
tela para outros pacientes do CAPS Cidade. Apaixonado pelos pincéis, ele conta
que trabalhava sem parar como pedreiro, cobrador de ônibus, fotógrafo e pintor
de parede, antes de cair numa depressão severa causada por estresse há mais de
dez anos.
“Houve uma época em que eu não conseguia segurar um prato na mão de tanto
que eu tremia. Tomava vários medicamentos. Às vezes ainda tenho a sensação
de que estou sendo vigiado, mas já tomo menos remédios e estou de pé”, conta
Bispo. Ele, que tem a voz tranquila e mantém o sorriso no rosto, sempre sonhou
fazer pintura artística, e no CAPS pode colocar em prática o dom de pintar quadros, o
que o deixa feliz.
Cura
De acordo com a coordenadora da Área Técnica de Saúde Mental, Álcool e outras
Drogas da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), Maristela de Amorim Coelho, a
Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 3% da população geral brasileira
sofrem com transtornos mentais graves e persistentes, 6% apresentam transtornos
psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e outras drogas e 12% necessitam
de algum atendimento, seja contínuo ou eventual.
Segundo ela, o índice de utilização dos serviços de saúde ainda é baixo no país, está
em torno de 13%. Maristela Coelho diz que a maioria das pessoas que sofrem de
algum transtorno mental não busca atendimento em saúde mental por diversos
motivos, entre eles o estigma, o desconhecimento da doença, o preconceito e o medo.
Na avaliação dela, a própria pessoa, muitas vezes, negligencia seu quadro de saúde
pelo fato de estar inserida em uma sociedade que julga e exclui quem está fora dos
padrões ditos normais. “A pessoa com depressão, por exemplo, é julgada
moralmente, é vista como preguiçosa, como alguém sem iniciativa. A falta de
compreensão sobre as necessidades de saúde do outro atrapalham a busca
e a continuidade do tratamento”, detalha Maristela Coelho.
Conforme explica a coordenadora do CAPS Cidade, Ana Maria Domingues Carvalho,
falar em cura de transtornos psíquicos graves é uma questão polêmica porque,
segundo ela, ainda não existe um indicativo de que isso seja possível. Mas ela
ressalta que as doenças mentais podem ser tratadas e os pacientes podem sim ter
qualidade de vida.
“A pessoa não precisa estar excluída porque é louca. O delírio, ou seja, aquilo
que é muito particular do sujeito, portanto o distancia do social, mantém o paciente
refém, uma vez que a troca com os pares fica comprometida. Quando se consegue
fazer com que a loucura dele venha a público, ele tem a possibilidade de fazer o laço
social. Num coral, por exemplo, ele passa a fazer parte de um grupo em que todos
têm o mesmo objetivo. Dessa forma, o paciente passa a ter uma identificação com
esse grupo porque o que ele sente e o que ele pensa é partilhado com o outro. O
outro também pode testemunhar o que se passa com ele”, explica Ana Maria,
que usa o termo loucura com muita tranquilidade.
Ela diz que a palavra loucura tem um peso muito negativo na sociedade e convida
as pessoas a pensarem de forma diferente não apenas o termo, mas a condição
da pessoa com transtorno psíquico. “Muitos de nós, que trabalhamos com saúde
mental, usamos o termo loucura de forma poética e elogiosa. Afinal,
tudo de novo e surpreendente que aconteceu na sociedade foi considerado primeiro
loucura. Ser louco é não se enquadrar nas regras e, pelo menos do ponto de
vista de saúde mental, isso não deve ser visto com olhar enviesado”, argumenta.
Autonomia
Morador de uma residência terapêutica, Jorge Eustáquio dos Santos, 51 anos, sai de
casa sozinho e vai andar pela cidade. Sensação boa de liberdade que ele nunca sentiu
durante os anos em que ficou internado. “Eu gosto de morar aqui. Lá não podia sair
sozinho, só acompanhado”, conta.
Assim como outros pacientes que moram em residências terapêuticas, Jorge
Eustáquio faz acompanhamento num Centro de Atenção Psicossocial. A coordenadora do
CAPS Moxuara, Maria das Graças Moutinho Trancoso, conta que ele gosta de participar do
Grupo Tramas, uma oficina terapêutica que confecciona tapeçaria. “As peças produzidas
pelos pacientes são vendidas e a renda é entregue a eles”, diz a coordenadora.
Sair sozinho, ter o seu próprio dinheiro e poder comprar o que ele quiser. A psicóloga
Gabriela Bertulozo Ferreira, do CAPS Moxuara, diz que a individualidade é um fator
extremamente importante para o bem-estar do paciente. “A identidade do
paciente fica comprometida em casos de internação prolongada. Ele vê todos os
dias as mesmas paredes, as mesmas pessoas. Ele não tem objetos pessoais.
Tudo é de todo mundo. Por isso é tão difícil retomar a vida para alguns pacientes
transferidos da internação para as residências terapêuticas”, detalha a psicóloga,
que ressalta a importância do resgate da autonomia e do fortalecimento dos vínculos
familiares e comunitários.
Na avaliação de Gabriela Bertulozo, cada caso deve ser tratado conforme suas
particularidades. Ela diz que o paciente não deve ser forçado a fazer uma oficina
de pintura, por exemplo, se ele não gosta. É preciso encontrar algo que o agrade.
Ela conta que, de forma geral, observa uma melhora da autoestima e do
bem-estar dos pacientes.
“Em casos mais crônicos, não podemos pensar em grandes avanços, pelo menos
inicialmente. Alguns pacientes nem falam, mas numa oficina de dança, por exemplo,
expressam um sorriso. Via de regra, se o paciente gosta de determinada atividade,
a oficina vai ajudá-lo. É um momento em que a pessoa se ocupa e se sente valorizada
porque, ao final, ela vê o resultado de algo que ela produziu. Muitos pacientes dizem
“eu não sei”, “eu não consigo”, e aos poucos vamos trabalhando esses sentimentos
com eles. Quem sabe despertar neles a vontade de voltar a estudar, de voltar a
trabalhar. Podemos criar possibilidades, crias novas formas de viver e de estar
no mundo", conclui.
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