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“E
então penso que este país foi para os diabos faz tempo, que os que estamos aqui
ficamos para ter pesadelos, só porque alguém tinha que ficar e enfrentar os
sonhos.” Roberto Bolaño
Prefiro me deitar cedo quando cortam a energia
às seis e a única lâmpada acesa é a da sala, alimentada por uma bateria de
carro. O Maher, que dorme aqui todas as noites, e o Rawad, que vem às vezes,
gostam de ficar conversando enquanto esperam até a meia-noite, quando a luz é
religada, para dormirem assistindo na TV algum filme de ação.
Minhas tentativas de acordar cedo e aproveitar
a luz da manhã para caminhar e fotografar a vila não prosperam. Quando me
levanto da cama e abro a porta da varanda, o horizonte tem apenas nuvens que
passam com o vento e nunca se esgotam ou a neblina está baixa, escondendo tudo
o que se estende para além dos cinco pés de azeitona do quintal.
As montanhas ao redor ainda estão cobertas de
neve e os turistas do golfo não chegaram - no ano passado, com temores a
respeito dos conflitos na Síria, poucos vieram. Indiferentes a isso, os figos
começam a brotar e serão colhidos em agosto, no final do verão. Lá se vão sete
dias em que, do quarto onde estou, com vista para a cidade e o vale, ouço o
vento e a chuva atacarem a janela.
É um raro abril chuvoso, diz o Samir.
Quando ele bateu no vidro da porta, por volta
das nove, mesmo horário em que veio no sábado passado, eu tinha apenas tomado o
café da manhã. Falou que iria ao banco em Aley e me convidou para acompanhá-lo.
Da outra vez fomos a Bhamdoun, almoçamos e depois rodamos pelas montanhas até
anoitecer: ele me mostrando as pequenas cidades turísticas do período de
inverno, lembrando do Brasil e falando um português que apesar de enferrujado
me conforta.
O Samir foi para o Brasil ainda nos anos 80.
Em Governador Valadares encontrou os parentes e trabalhou, chegou mesmo a
juntar algum dinheiro durante o governo Collor. Imagino que já era casado, com
filhos, por isso voltava ao Líbano, vivendo entre cá e lá. Sua família também é
de Btater e tem relações antigas com a minha – a mãe do meu bisavô, de quem
pouco se sabe, era uma tia distante.
Ele encontrou o vô Amim no velório de um
patrício, em Valadares, no início dos anos 1990. Também é amigo de longo tempo
do Tio Salmen, com quem se encontrou em diversas ocasiões ao longo dos últimos
vinte anos, em ambos os países.
“Onde a gente nascer é melhor”, disse o Samir
a um compatriota que lhe inquiriu sobre sua preferência poucos dias após
desembarcar no Brasil pela primeira vez. O homem então lhe perguntou por que
não voltava pra casa. Agora, dividido entre o amor brasileiro e, do lado de cá,
a família, os filhos e algumas terras, ele refaz a resposta e diz que o país
que o acolheu e onde ainda mantém alguns negócios é o lugar para viver seus
últimos anos. Mas ele não passa muito dos 50 e não se cansa de dirigir.
No Vale do Bekaa, quase fronteira com a Síria,
encontramos um brasileiro filho de libaneses. Esse homem nos fala da guerra
civil no país vizinho, mostra os acampamentos de imigrantes nas margens da
rodovia e diz que o conflito se estenderá até aqui no princípio do verão.
À noite, em casa, o Maher confirma. “Sim,
estamos esperando”, ele diz, o que me deprime. Inicio uma discussão suicida, em
um inglês carente de vocabulário, a respeito da “pureza” da culinária libanesa.
Falo de misturas e de influências, cito armênios e africanos, espero que ele
prove o feijão preto que eu acabei de cozinhar, mas ele se recusa e termina
afirmando que todos os quibes feitos no Líbano são iguais. Tento entender sua
ideia de nação, contesto sua fidelidade à comunidade druza e, como provocação,
afirmo que ele deveria pensar antes no país. A partir de certo ponto me perco
entre os argumentos que sustentavam minha falsa opinião e não sei mais o que
estou falando. Ele percebe e se cala. Amel e Sárya, que assistiam ao debate sem
entender a razão daquilo tudo, também não se surpreendem quando eu me levanto e
saio dizendo que vou dormir.
o
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© 2013 BTATER
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