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Pegamos um trecho da estrada
que vai daqui até a Síria no caminho para Schuf. O Tio Sami, filho mais velho
de um dos irmãos do meu bisavô, é submetido a sessões de hemodiálise três vezes
por semana no Hospital de Ayn Wzein, destinado à comunidade druza e que
comporta também uma casa de idosos e uma faculdade de enfermagem. Fisicamente é
Sami quem mais lembra o vô Amim, principalmente pela cor da pele, morena, e
pelos traços do rosto.
Há outro Amim na família: um
tio que conheci ontem, grande e carinhoso, casado com Layla, filha da Mahani,
uma das irmãs mais novas do meu bisavô. A árvore genealógica é complexa, mas
acho que até o fim da estadia estará desenhada.
A guerra civil na Síria foi
assunto no mate de segunda-feira à noite. Após a viagem a Beirute almoçamos na
casa do Salman – tabule, batatas fritas, berinjela frita, legumes em conserva,
frango assado comprado em Aley, acompanhado de uma pasta à base de alho e,
claro, pão árabe dobrado e colocado ao lado do prato – e depois do almoço fomos
até a vila para encontrar o Amim e a Layla, que não moram em Btater mas vieram
para uma visita.
Ela me mostrou, no facebook, as
fotos de todos os filhos, da filha e dos netos que vivem na Alemanha, nos
Estados Unidos, Kuwait e Qatar. Os dois tios também viveram boa parte da vida
no Kuwait, mas retornaram às montanhas durante a Guerra do Golfo. Também
aproveitei para mostrar as fotos de parte da família em Manhuaçu.
Layla e Rifah, esposa do Tio
Sami, são mulheres de referência na comunidade druza, estudiosas da religião, e
por isso usam véu branco. Para uma pessoa de fora da família, como eu, não é
“permitido” tocá-las, nem mesmo um cumprimento de mãos ou um abraço. O Maher
havia me dito isso assim que cheguei e ele apontou o quadro da sua avó na
parede da sala. Ela também usava o véu, mas na hora achei que a homenagem era
pelo fato de ela ter falecido e ser mártir da guerra. A Tia Layla, sentada ao
meu lado no sofá, voltou a me explicar a tradição, lamentando o fato de não
poder me mostrar com gestos o quanto estava feliz com minha presença, falando
em inglês e apontando o coração diversas vezes.
O Zaher, único filho da Layla
que mora na região, chegou e mostrou no facebook uma página criada por ele há
dois anos, Cars are my Drugs, na qual postava fotos de super carros e que
contava com 175 mil fãs até ser roubada por um hacker. Mais tarde, durante o
mate, ele e a Rifah, que nasceu na Síria e cuja família ainda vive lá,
emendaram um debate sobre a situação dos druzos no país vizinho, lutando por
Bashr Al Assad, e o apoio de Walid Jumblatt, o principal político druzo
libanês, aos rebeldes.
Essa é apenas uma das
contradições envolvendo a geopolítica da região, o que torna qualquer
posicionamento bastante complexo. O fato, traduzido sumariamente pelo Maher, é
que os druzos sírios, há alguns anos, receberam apoio e proteção do presidente
do país quando foram ameaçados pelos muçulmanos. Por isso a tomada de posição
em favor do ditador. Zaher completou dizendo que na Síria morreram 200 mil
pessoas em dois anos, mesmo número de libaneses mortos em quase 15 anos de
guerra civil.
O Bassel, que chegou mais
tarde, disse que o Walid Jumblatt foi infeliz em seu posicionamento, mas
reconheceu que a falta de “democracia” é um problema. Para ele, a Primavera
Árabe não deveria ser chamada de primavera já que a consequência foi a
radicalização dos governos islâmicos nos países com ditadores depostos, como
Egito e Líbia.
Por aqui, aliás, a maioria dos
homens na faixa de 45-50 anos são veteranos não apenas da guerra civil
libanesa, mas também da guerra da Líbia de Muammar Gaddafi contra o Chade. Foi
a amizade de Walid Jumblatt com o ditador líbio que promoveu o envio de tropas
druzas para o país norte-africano e até hoje essas sequelas são visíveis em
alguns corpos: no domingo, da varanda de casa, um desses veteranos me mostrou o
ombro deformado por uma bala.
Os druzos nunca iniciaram
conflitos e, como afirmam, estão sempre defendendo suas terras. Ao mesmo tempo,
se orgulham de nunca terem perdido uma batalha. Conciliam esse espírito
guerreiro ao respeito a todos os homens e religiões, descrito nos cinco
“mandamentos” e sete princípios da religião, que o Bassel me mostrou num
pequeno quadro pendurado na entrada da casa, em árabe e inglês.

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