Na primeira noite, a Sária me ofereceu uma bacia azul com água quente e sugeriu que eu lavasse os pés antes de dormir. Repito diariamente esse e outros rituais, como beber mate, servido às vezes com açúcar e depois de esfregar casca de limão no bico da bomba; e tomar o café da manhã na varanda: comendo uma espécie de broa doce e fina, com uma formidável vista para a cidade e parte do vale.
Hoje cedo o café foi curto: tentei escapulir para uma caminhada solitária na manhã nublada, subi em direção a Shanay, a vila vizinha, do lado oposto à parte antiga de Btater, mas não fui muito longe: da porta da cozinha, Calcab, ainda de pijamas, me chamava. Ela me convidava para o café da manhã com o Salman, seu marido, a mãe e dois dos seus irmãos, todos vizinhos. A Calcab arranha algumas palavras em inglês e o Salman parece ter simpatizado comigo, da nossa varanda vemos a varanda da casa deles e a comunicação é por meio de gritos e acenos.
Depois de dois ou três mates e de provar uma espécie de vagem fresca da qual um dos irmãos comia as sementes, muito macias, o Salman mostrou uma lista escrita em árabe e me convidou para ir até Aley fazer compras. Aley é a principal cidade da região, a capital druza, posto avançado dos combates em tempos de guerra. Mas o Mercedez passou direto, só parou em Bhamdoun onde o Salman e um dos irmãos da Calcab me ofereceram esfiha – aberta, do tamanho de uma pizza média.
Passamos direto por Aley e chegamos à Grande Beirute por uma auto-estrada movimentada, cercada por shoppings, centros comerciais e edifícios, em alguns momentos tendo o mar à esquerda, à direita, montanhas. Cruzamos um túnel e alcançamos Jounieh, um balneário repleto de hotéis e restaurantes de frutos do mar. O Salman apontava alguma coisa no alto da montanha dizendo “harissa” e eu fingia entender. Depois de passear pela orla, ele estacionou o carro e mostrou o que até então eu nem desconfiava: um teleférico ligando a praia até o topo da montanha.
Meu medo de altura acendeu o sinal de alerta, mas aqui é preciso muito vocabulário e habilidade para recusar algo. Parênteses necessários: é “obrigatório” aceitar todos os cafés que te oferecem; não é incomum fazer a mesma refeição duas ou três vezes; e é preciso estar bastante atento durante as refeições para que não sirvam comida no seu prato depois que você já se considera satisfeito.
Por sorte, o teleférico estava fora de funcionamento para manutenção e o irmão da Calcab sugeriu que subíssemos de carro. Foi rápido e seguro. Harissa é uma vila católica no alto da montanha onde há o Santuário de Nossa Senhora do Líbano, com uma grande imagem da santa, uma igreja, loja, restaurantes e um mirante. A vista é um panorama geral da baía de Beirute até Jounieh e para além.
Passamos rapidamente por Beirute e, na saída da cidade, paramos para comprar morangos com um vendedor ambulante na beira da auto-estrada. Pouco antes eu tinha perguntado sobre a área, uma periferia com prédios altos e beges. Desci para fotografar Salman e o cunhado negociando e depois de um clique relaxei encostado no carro. Não pensava em nada nesse momento, talvez só tentasse entender o lugar: as varandas com toldos coloridos, o comércio ao redor, o movimento de carros, as buzinas e as motos que vinham na contramão da pista pelo acostamento. Não me dei conta quando uma moto parou bem ao meu lado e um dos caras segurou meu braço e falou qualquer coisa que eu não poderia entender. Olhei pra ele e não consegui dizer nada, mas ele insistia em me segurar e falar. Gritei não sei o quê olhando em direção ao Salman, dez metros distantes de mim, e eles vieram correndo. Eles explicaram algo do qual só entendi “brazili” e “habib” e os dois rapazes se foram.
Fiquei mudo no caminho de volta. Quando alcançamos Aley, com seus mercados e construções antigas, tentaram me explicar que estávamos em um bairro xiita e foi por conta da minha barba que os dois da motocicleta pararam para tirar satisfação, me tomando por sunita.
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