segunda-feira, 15 de abril de 2013

VITOR GRAIZE NO LIBANO 2



Ontem a cidade ficou sem luz entre as 18h e a meia-noite. Isso acontece por aqui há muitos anos, 15 segundo um primo, desde o fim da guerra civil segundo outro. Funciona como um rodízio, alternando as cidades e os horários, em ciclos de seis horas, é o que eles me dizem. Quando anoiteceu, estávamos na varanda conversando com algumas visitas e era impossível identificar os rostos à luz de velas – acho que foi o Tio Salmen quem comentou que em seu primeiro retorno a Btater praticamente não conseguiu sair de casa no primeiro mês, porque todo dia vinha gente. Na porta da casa tem um bloquinho de anotações amarrado perto da maçaneta para que uma possível visita anote o nome em caso de não ter ninguém em casa. É claro que não foi colocado ali por minha causa e nem estou me comparando aos imigrantes ilustres que recebem tantas visitas.
Btater tem dois grandes geradores que são ligados quando a iluminação principal é cortada. Os moradores pagam uma taxa para usá-lo, de acordo com o consumo. Mas ele não funciona para a iluminação pública, por exemplo, e está completamente escuro na rua quando eu e o Maher saímos para caminhar depois do lanche da noite – a custa de muito empenho para explicar a ele e ele aos outros que eu não queria ir de carro.
Assim como todo jovem daqui, o Maher tem um carro, um Nissan antigo que ele e o Rawad recuperaram e que hoje, segundo ele, vale em torno de três mil dólares. Outro primo, de 19 anos, Bilal, filho do Salman e da Calab, tem um Fiat 1970 que ele chama de Fifi. Um dia seu irmão mais novo, Karin, de 8 anos, rolou pra fora do carro em uma curva na entrada da cidade. As portas não são nem um pouco confiáveis. Pegamos carona no Fifi depois da nossa caminhada e o Bilal, que está mancando de uma perna, nos levou até o local em que foi atropelado há 6 meses. Ele contou que estava parado em um recuo da estrada perto da sua antiga moto, conversando com uns amigos, quando um motorista entrou de repente. Imagino que isso possa ocorrer a qualquer momento, já que as ruas são estreitas, não há calçadas e os motoristas dirigem loucamente. O traçado da vila acompanha as escarpas da montanha, tendo como limite, abaixo, nada menos que um penhasco sobre o vale de um rio que eu ainda não consegui ver, mas que nasce na montanha coberta de neve bem ao fundo. Do outro lado do vale, estão mais cidades druzas do Monte Líbano.
Caminhar à noite por essas ruas sem iluminação parece não fazer sentido para o Maher, mas usei um argumento para convencê-lo. De tarde, uns garotos haviam passado pela casa e falamos de futebol. Eles me contaram empolgados que jogaram por um tempo no Al Hilal, na Arábia Saudita. Agora estão aqui, um deles no Exército e o outro jogando em um time pequeno da região chamado Dia da Independência. Eles nos convidaram para assistir o amistoso entre Brasil e Bolívia na casa deles – eu já havia conhecido o pai, a mãe e a irmã que vieram logo após o jantar na noite anterior.
(O tema futebol merece um capítulo à parte. A começar pela casa: em um dos corredores há um quadro com uma pintura do Ronaldo, o fenômeno, vestindo a camisa canarinho e aparentando um visual Copa de 2002. No quarto onde estou, anteriormente usado pelo Thalíh, há uma bandeira do Brasil sobre um holofote que segundo me contaram fica no telhado em época de Copa do Mundo. O Thalíh agora está no Brasil e infelizmente é flamenguista, ao contrário da família inteira, vascaína, a começar pelo vô Amim, passando pelo Tio Salmen, Said e obviamente por mim. Mas aqui eles não se preocupam com os times, apenas com a Seleção.)
A casa onde estou fica em uma parte relativamente nova da cidade, que ainda não era ocupada quando o Said saiu daqui, em 1989. Hoje há muitas casas e pequenos prédios e é preciso descer uma longa ladeira para chegar até o que parece ser o portal da cidade: o monumento aos mártires da guerra civil, com um retrato em bronze do Kamal Jumblat e os nomes dos 44 habitantes de Btater mortos durante os combates. Do outro lado da rua está a sede do PSP, com bandeiras libanesas sobre o telhado.
Passamos por ali e mais adiante o Maher me aponta a casa do homem escolhido como representante da comunidade no contato com o governo. Eleito por voto direto, é ele quem redige as cartas enviadas às autoridades com as demandas da vila. Mais adiante, está a sede da municipalidade, um pequeno imóvel com uma ambulância e um carro oficial estacionados na porta.
Na rua principal também está a escola, onde estudam o Mazen, irmão mais novo do Maher e do Bassel, e o Karin; um monumento com inscrições em árabe cercado por correntes; e o prédio onde antigamente funcionava o mercado, hoje completamente fechado. Pergunto quantos anos tem a construção e o Maher estima uns 200, quem sabe. Depois ele me mostra a antiga fonte da cidade onde as famílias costumavam retirar a água consumida em casa. Ele me conta que a expansão da vila e a construção de casas próximas ao curso d’água acabaram tornando-a pouco saudável. A água que bebo, por exemplo, o Maher pega para toda a família em outra cidade, cuja fonte ele diz ser um “olho d’água”, mesma expressão que usamos para as pequenas nascentes no Brasil.
Perto dali estão duas igrejas católicas em reforma. Ele me explica que antes da guerra civil havia uma comunidade católica na cidade e que agora estão planejando voltar. Finalmente, quando chegamos à casa com TV a cabo era 23h e eles não estavam, tinham saído para ver o jogo em outro lugar.

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