segunda-feira, 15 de abril de 2013

VITOR GRAIZE NO LÍBANO 1



Estou em Btater, uma vila nas montanhas do Líbano, a cerca de 1h de Beirute por uma estrada sinuosa, com pouca sinalização e diversos trechos em obras. O tráfego é, obviamente, confuso e barulhento. Do trajeto do Aeroporto Internacional até aqui não vi um motorista dar seta sequer uma vez. Dois brimos me buscaram: Rawad, o motorista, tem 30 anos, é uma cópia fiel do Said, fala toda hora em ir ao Brasil, fuma e foi o único que bebeu arak no jantar;  Maher tem 24 anos, fala inglês, não fuma e disse que bebe pouco. Eles me esperavam com um folha de papel onde se podia ler Victor Ghraizi. Quando eu acenei, eles estranharam e depois contaram que esperavam um senhor de barba e cabelos brancos.
No caminho, eles perguntaram com o que eu trabalho. Eu respondi e, enquanto acelerava, o Rawad disse e o Maher traduziu que “não importa com o quê, mas trabalhar é a coisa mais importante para o homem”. Rawad quis saber com quantos mil dólares ele poderia abrir um negócio no Brasil. Beirute eu só vi do avião e pelas janelas do carro, um Mercedes antigo.
Quando chegamos a Btater era fim de tarde e havia gente na rua, alguns primos que moram ao lado e a quem fui apresentado antes de entrar em casa. A casa poderia estar em Manhuaçu, na Rua Antônio Welerson, como era a do meu bisavô Amim. Fica num platô, na entrada da vila e dela se avista o restante da cidade, formada por algumas poucas fileiras de casas e terrenos de cultivo nas encostas. Foi aqui que Slayman, um dos irmãos mais novos do meu bisavô, pai do Said e do Thalih, que estão no Brasil, viveu até morrer, há poucos anos, e agora vivem duas de suas filhas.
Você entra por uma laje onde certamente pensam erguer outros cômodos, desce dois lances de escada e entra por um corredor que dá em uma ampla sala onde se conjugam sofás, tapetes e uma mesa de jantar. (Pensando agora sobre o que escrevi hoje de manhã, a sala me lembra muito a da antiga casa da Tia Síria, na Rua Alencar Soares Vargas, em Manhuaçu). Ali estão as três irmãs do Said: Samya, a mais velha, mãe de Rawad, Sália e Amal. Todas me beijam. Há outra sala, para onde me levam, com cinco sofás, uma televisão e um fogão de lenha ao centro. Nas paredes há fotografias e pinturas: um retrato emoldurado e não muito antigo de Slayman; um quadro com o retrato de Kamal Jumblat, líder do Partido Socialista Progressista libanês; uma tela com a imagem de um líder espiritual druzo; e lindo um retrato em preto e branco de Neufa Nagib Ghraizi, mãe dessas três mulheres. Neufa é mártir da guerra civil, foi militante druza do Partido e morreu atingida por um estilhaço de uma bomba na casa que servia como moradia para todas as pessoas da família enquanto as montanhas eram ocupadas pelas tropas de resistência. Os quadros, os retratos, os sofás, os tapetes, as paredes pintadas com apenas uma mão de tinta, o pé direito muito alto, o cheiro, tudo me lembra a casa do vô Amim.
Nos sentamos em volta do pequeno fogão, cuja fumaça é levada por uma chaminé de cobre perfeitamente vedada erguida mesmo no centro do cômodo. A Sália é quem cuida de sempre alimentar o fogo colocando um punhado de pinhos que ela retira de um cesto. O Maher me conta que antes do inverno a família comprou cerca de duas ou três toneladas de pinho e quase tudo foi usado nos últimos 6 meses. Servem café, feito à moda turca: sem coar, o grão brasileiro moído com um tipo de erva seca aromática cujo nome eu ainda não gravei. Servem em pequenas xícaras sem alça e deixam o bule repousando na chapa de ferro do fogão. Vez ou outra um pinhão mais nervoso estoura e, se deixar a portinha aberta, algumas faíscas voam no tapete – é preciso apagar correndo.
A Amel foi ao Brasil com o Thalih no início dos anos 90. Lembro dos dois em um jantar no nosso apartamento da Alencar Soares Vargas. Durante toda a noite eu pedia ao Thalih para escrever em um caderno os objetos que eu apontava – porta-retratos, móveis e coisas de cozinha. Durante muito tempo guardei esse caderno, hoje não sei mais onde está. Eles passaram algum tempo em Manhuaçu, onde conheceram meu bisavô, e também foram a Vitória visitar o Tio Salmen (Chafic). Amal se lembra de mim, da minha irmã e da minha mãe, que segundo ela “era muito bonita”. Ela arrisca algumas palavras em português, sem conjugar nenhum verbo e ensinou toda a família a falar “tá bom”, o que muitos repetem pra mim nessa primeira noite. Eu me divirto quando eles falam assim como eles se divertem quando eu pergunto se o homem no retrato é Kamal Jumblatt – primeiro se orgulham por eu conhecê-lo, depois riem da forma como eu pronuncio o nome, e vão passar o resto do jantar pedindo para eu falar nomes árabes.
Durante o café, a Samya diz e o Maher traduz que seu coração gostou de mim e que está muito feliz por eu ter vindo. Ela e as irmãs repetem a todo momento que eu sou bem vindo. Tento falar alguma coisa que traduza minha felicidade por estar aqui e o quanto sonhei com isso, mas penso no significado dessa viagem para a memória do meu bisavô, o filho mais velho que emigrou com 18 anos, num rompante de teimosia e espírito aventureiro – e em certa medida, talvez, um desejo de superar o pai, Said, que também já havia vindo ao Brasil, e superar a memoria da mãe, que se não me engano naquela altura já havia morrido – e nunca mais retornou, nem para uma breve visita, mas manteve contato por cartas com a família mesmo após o segundo casamento do pai e o nascimento de outros irmãos os quais, se ele conheceu, foi por meio de retratos em cópia única feitos pelo Studio Sahag ou pelo contato à força com o Tio Salmen, que ousou ser como o irmão e foi parar em Manhuaçu, em 1954, sem a ajuda ou consentimento do vô Amim, nem das irmãs mais velhas, e que por isso provocou uma divisão na família e consequentemente dividiu Btater. Penso nisso tudo e não falo nada, choro. Foi só nisso que pensei de Paris a Frankfurt e de Frankfurt a Beirute. E como foi difícil segurar as lágrimas sobrevoando o que eu imagino ser a Turquia e um pedaço do Chipre, depois no aeroporto e na estrada até aqui.
Mas agora tudo é real e aos poucos foram vindo parentes: chega o marido da Samya, Nemer; chega o Sami, que é pai do Maher e gêmeo da Samya; Ali, o irmão do Rawad com a esposa; o Salman e a esposa, Calcab; além dos primos que estavam na rua quando eu cheguei. Todos estavam ali curiosos e tentando entender quem eu era, mas todos conheciam de nome o meu bisavô Amim e a minha avó Celina. Então depois do café, por volta das oito, o jantar foi servido. E já quando terminávamos o Bassel chegou da Universidade onde estuda finanças. Ele trabalha em uma cafeteria do aeroporto e foi com quem mantive contato por email antes da viagem. Ele também fala inglês.
Após o jantar voltamos para a sala, todos ali reunidos. Mostrei as fotos que trouxe, retiradas do acervo da minha vó, que por sua vez os recolheu na casa do meu bisavô após a morte dele. As fotografias mais recentes foram tiradas pelo Tio Salmen em 1988/89, em uma longa visita logo após a guerra civil. Eu cresci com essas imagens da família reunida em torno de uma grande mesa de jantar e agora descubro que foram feitas no noivado do Salman (não o tio, mas um primo de cerca de 45 anos) e sua esposa, que estão agora na minha frente, com dois filhos. Eles mesmos não tinham essas fotos.
Aos poucos eles começam a ir embora. Restam as três irmãs, Maher, Bassel, Rawad e eu. A Sália pergunta se eu gosto de mate, vai até a cozinha e volta trazendo uma bandeja com uma pequena cuia e dois potes de vidro. É erva-mate sul americana, que tomam toda a noite, em várias casas, como chimarrão, me explica o Maher. Terminamos a noite assim.


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