Modelo usa organizações sociais para livrar governadores do dever de casa e é inspirado em experiência pernambucana que já não deu certo
por Cida de Oliveira e Tiago Pereira publicado 14/09/2015 15:15
ALYNE PINHEIRO/SECOM-PE
Pioneiro Estadual, Ginásio Pernambucano,em Recife, teve diretor indicado por empresas entre 2004 e 2008
Criado em 1825, o Ginásio Pernambucano, em Recife, é o colégio mais antigo do país em funcionamento. Ali estudaram o economista Celso Furtado, os escritores Ariano Suassuna e José Lins do Rego e o empresário das comunicações Assis Chateaubriand. Outro diferencial da escola estadual é ser a primeira gerida pela iniciativa privada. Em 2004, depois de reformada, foi reinaugurada como Centro de Ensino Experimental, um projeto idealizado por empresários da multinacional holandesa Philips, da Tintas Coral, do Eurobank e da empresa de capital misto do setor elétrico Chesf. Com apoio de outras, essas companhias criaram em 2000 o Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE).
Seus 2.200 estudantes, transferidos antes das obras, não puderam voltar para lá, assim como seus professores. Foram abertas apenas 300 vagas, disputadíssimas, e selecionados 26 novos professores para jornada de oito horas diárias, com salário três vezes maior que o do conjunto da rede, fora premiação por resultados. Tudo pago com dinheiro do estado. O projeto foi implementado de cima para baixo, sem aviso prévio, surpreendendo a todos.
Diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco (Sintepe) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), o professor Heleno Araújo conta que havia uma promessa de estender o “modelo de excelência” para toda a rede. Na realidade, as vagas no principal colégio de Recife foram cortadas radicalmente. O estado promoveu uma escola de elite. “O ICE reformou o prédio e indicava a direção e coordenação. O estado pagava tudo”, conta.
Sindicato e movimento estudantil então se mobilizaram contra a parceria que se ampliava para outras 13 escolas num processo conflituoso, desativando antigas estruturas, impondo novos gestores, exigindo o que as escolas não tinham, como biblioteca, chuveiro nos banheiros, refeitório, laboratórios, quadra coberta. O vice-governador Mendonça Filho (DEM), então candidato a suceder Jarbas Vasconcelos (PMDB), na eleição de 2006, prometeu ampliar para 50 as escolas experimentais. Venceu Eduardo Campos (PSB), morto em 2014.
Pressionado por críticos e defensores do modelo, Campos não o combateu nem defendeu. Em 2008, transformou-o em política pública, com o nome de Escola de Referência. Devolveu ao estado a indicação para gestores escolares, mas manteve o período integral, o sistema de seleção de alunos e de professores, bem como a gratificação, embora o pessoal administrativo não tivesse esse direito.
Nada sobrou
Algumas unidades se tornaram verdadeiras aberrações: as Escolas de Referência, de ensino médio, conviviam com o fundamental. Em um mesmo prédio, uniformes diferentes, merenda diferente – uma terceirizada e a outra feita no próprio local. Hoje são 100 as de tempo integral, sendo 13 profissionalizantes e 200 com regime semi-integral, com aula o dia todo apenas duas vezes na semana. A maioria é precária, sem chuveiro nos banheiros, refeitório nem laboratório, inclusive o Ginásio Pernambucano, onde tudo começou. Há 2 anos, os alunos se mobilizaram para expor a situação.
“Nessa ampliação do modelo, são trabalhados basicamente os conteúdos de português e matemática visando os índices no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica)”, conta Araújo. Os professores que não queriam o sindicato nessas escolas, diz, hoje engrossam a greve. Licenças médicas, por exemplo, anulam gratificações, que já não triplicam o salário como antes. “De positivo, não sobrou nada. O aluno não sai preparado para a vida, para o exercício da cidadania nem para o mundo do trabalho. Sem contar aqueles que, por estarem defasados na relação idade-série, foram expulsos para o curso de 18 meses da Fundação Roberto Marinho. E a lógica da aprovação automática tende a se aprofundar com as Organizações Sociais (OS), que vão em busca de bônus e resultados quantitativos.”
Longe de ser panaceia para os problemas da educação pública, a proposta que começou no Ginásio Pernambucano se espalhou e inspirou o governo paulista, que buscou ali elementos para suas escolas de tempo integral. E continua fazendo escola. Os governadores Simão Jatene (Pará) e Marconi Perillo (Goiás), ambos do PSDB, vão além: querem transferir toda a gestão das escolas para OS.
No final de julho, o colunista Antônio Gois, do jornal O Globo, informou que o governador paraense testará em sua rede um modelo de administração escolar controverso até mesmo nos Estados Unidos, onde foi criado: as chamadas escolas Charter. Públicas, mas administradas pela iniciativa privada, deverão ser construídas 50 unidades de ensino médio. Os gestores privados vão receber conforme os resultados alcançados.
Para a secretária-geral do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará (Sintepp), Sílvia Letícia da Luz, as OS na educação preocupam e devem ser intensamente debatidas. “Os parceiros privados vão construir as escolas que vão administrar. Mas com o tempo devem assumir toda a rede, já que não há concurso para repor os servidores, mantidos de maneira precária”, diz.
Como ela destaca, há respaldo legal para essa política. O Plano Nacional de Educação (PNE) a legitima em sua meta 20, que trata do financiamento da educação, ao permitir que, dos 10% do PIB a ser destinados para o setor, podem ser retirados recursos para custear essas parcerias. Além disso, a reforma administrativa de 1998 abriu as portas para as OS. Questionadas no Supremo Tribunal Federal (STF), foram validadas em abril passado.
Simão Jatene, segundo Sílvia, já deu início ao seu projeto em outras frentes. Muitos professores perderam aulas, e os alunos do ensino médio são distribuídos em turmas de 50, 52, para assistir a teleaulas da Fundação Roberto Marinho. “A evasão é crescente numa etapa já tão problemática. Os professores de inglês estão perdendo o emprego porque o governo comprou cursos R$ 198 milhões, de uma consultoria ligada a um empresário que foi preso por fraudar o seguro obrigatório.”
“Rende mais”
No começo de janeiro, na primeira reunião com seu novo secretariado, Marconi Perillo afirmou que já estudava a adoção do modelo de organizações sociais na gestão das escolas. Segundo os jornais goianos, a grande determinação do tucano “é que filhos de pobres estudem em escolas com padrão dos filhos de ricos”. Perillo afirmou ainda que a produtividade dos servidores vinculados às OS “rende mais pelo fato de serem substituídos por profissionais no mercado caso não correspondam às expectativas da sociedade no desempenho de um trabalho de qualidade”. Em abril, quando publicou edital para essas organizações, o governador de Goiás voltou a defendê-las na educação – “Uma iniciativa ousada e corajosa pelo enfrentamento ideológico”, afirmou.
“Como não apareceram interessados, o governo está estimulando a formação dessas organizações”, afirma a presidenta do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás (Sintego), Maria Euzébia de Lima, a Bia. A entidade está entrando com ação na Justiça para impedir que o estado coloque empresas para dirigir as escolas. “Educação é uma tarefa do Estado enquanto ente público. Quem quiser abrir sua própria escola, que a submeta ao conselho de educação e coloque quem quiser para gerir. Mas na escola pública, não. Isso é um absurdo”, diz. Para a dirigente, falam em terceirizar a gestão, mas não falam como ficará a merenda escolar, o livro didático. O estado não abre concurso para professores há seis anos. O último para administrativos foi há 15 anos.
De acordo com o site do ICE, há ações por meio da mobilização da sociedade e da classe empresarial em parceria com os governos do Ceará, para o ensino médio profissional, com a cidade do Rio de Janeiro para o ensino fundamental (do 7º ao 9º ano), e com os estados de Sergipe e Piauí, para o ensino médio – na mesma lógica de Pernambuco. E há proposta também na Assembleia Legislativa do Espírito Santo. De acordo com Heleno Araújo, que coordena o Fórum Nacional de Educação, em cinco escolas capixabas será adotado o mesmo modelo. “Já vão mexer na estrutura dessas escolas, tirar alunos e professores. O pessoal está resistindo.”
Segundo ele, a situação é mais preocupante em Goiás e no Pará. Enquanto em Pernambuco gestores e diretores eram indicados, as partes financeira e de pessoal continuavam ligadas ao estado. “O modelo de Perillo é o mesmo das OS na saúde, sem fiscalização, que contratam diretamente seus empregados, matando o concurso público, a representação sindical desse trabalhador e o vínculo, que é fundamental na educação. O estado repassa recursos e a entidade deve cumprir as metas definidas pelo governo. Se alcançar, a concessão é renovada. Se não, é substituída por outra ou devolve para o estado”.
De acordo com o relatório Modelo de Escola Charter: A experiência de Pernambuco, da Fundação Itaú Social, as escolas Charter “são um exemplo de como os setores público e privado podem somar diferentes expertises para promover mudanças de paradigma na proposição de alternativas em reformas do ensino público”. O mesmo documento, porém, afirma que “o modelo apresentado (Pernambuco) não dá conta de uma rede pública de ensino inteira, mas tampouco seu propósito é atingir esse tipo de escala”. E que “o valor das experiências de escolas Charter está justamente no fato de que, por serem menores e trazerem um modelo de cogestão com o setor privado, proporcionam mais agilidade e espaço para inovações”.
Já estudos das universidades de Rutgers e do Colorado, nos Estados Unidos, revelam que os orçamentos das escolas privatizadas sob contrato variam. As mais bem dotadas, como de Nova York, recebem por aluno US$ 10 mil a mais do que as públicas tradicionais e outrascharters. E nem assim oferecem ensino de qualidade superior. Então, a explicação para a proposta de privatização, transformando a educação em negócio, pode estar na possibilidade de buscar recursos tanto do setor público como privado. Espera-se que os governantes estejam atentos a erros, que podem custar caro aos cofres públicos e à formação de algumas gerações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário