Beirute permanece indecifrável lá embaixo. Enquanto isso, a mil metros de altitude, aos poucos descubro caminhos que parecem improváveis. Escadas, trilhas em meio a parreiras e oliveiras, becos beirando os quintais, ladeiras entre antigas fontes e ruínas, os meus passos curiosos guiados por pés que já fizeram o mesmo trajeto incontáveis vezes, Sárya e Amel novamente no percurso intricado do centro da vila até a velha casa do avô, Said, há mais de uma centena de anos.
Contam os novos moradores que corria pelo chão uma pequena mina, incessante, trazendo a água de beber e cozinhar. Na cozinha a família estocava os alimentos e havia um pequeno fosso para o fogo. Dois cômodos completavam o desenho da casa, dois quartos, um de cada lado do largo corredor de entrada, de onde, olhando para fora, via-se alguns pés de figo plantados na encosta de um riacho. As paredes grossas pintadas de branco, o pé direito alto, duas janelas em cada quarto. Os móveis são outros, a família é outra, mas a casa é a mesma em que viveu, nos dezoito anos em que viveu em Btater, meu avô Amim.
É a casa onde também nasceram Zahía, Bahía e Sada, suas três irmãs mais novas. Zahía e Sada viveram e morreram em Btater; Bahía, cujo nome, de árabe, só tem o acento no i e o h lido como r, inspirado isto sim pela visita de meu tataravô Said a Salvador no começo do século XX, emigrou para o Brasil com o marido, Nagib, e viveu a maior parte da vida em Manhuaçu. Pouco antes de morrer, já perto dos 90 anos ou mais, andava pela cidade um pouco cega e um pouco louca.
O Amim, já senil, com quem eu convivi até os 16 anos, repetia sempre os mesmos rituais. Almoçava, e almoçando com os netos dizia que era preciso comer devagar, mastigar bem e a tia Síria sempre falava “pai, deixa os meninos em paz, deixa eles comerem”; caminhava, e caminhando com os netos segurava a gente pelo pescoço de um jeito que eu nunca vi ninguém fazer e de vez em quando me pego tentando repetir com alguma criança, mais para tentar entender do que por acreditar; e finalmente dormia.
Em casa assistia o futebol em uma TV com sinal ruim – a minha bisavó preferia o Programa do Bolinha, na Bandeirantes, mas morreu sem ter coragem de vê-lo ao vivo na inauguração do Ginásio Poliesportivo de Manhuaçu com medo de que a construção desabasse – sentado no sofá de couro marrom e estampa marrom e dourada.
O mesmo sofá onde se sentou o Khaled. Trazido pelo tio Salmen em algum momento do fim dos anos 1980, ele vinha com um lenço no pescoço e falava de uma forma estranha. Explicaram que era um primo e que tinha levado um tiro na garganta durante a guerra, mas continuei assustado.
A fotografia do Khaled que está pendurada na grande sala de entrada da casa dos seus pais, em Btater, nem de longe lembra o primo que meu olhar de criança e minha memória de infância envolveram em uma névoa de incompreensão e medo. Nela um Khaled jovem e bonito encara a câmera vestido de forma elegante. Ele morreu cedo.
Seu pai, Tufic, é um senhor forte e moreno de 83 anos com um longo bigode, vestes pretas e uma touca branca que o caracterizam como “shaikh”, um seguidor fiel da religião druza. É filho da Zahía, trabalhou por muitos anos em Dubai e hoje está aposentado. Tufic fala que o filho passou dois anos na Rússia em tratamento e seguiu para o Brasil com o mesmo objetivo. Digo que lembrava do Khaled com um bigode e um lenço no pescoço, ele balança a cabeça afirmativamente e depois levanta um braço para o retrato, dizendo algo que eu não entendo em homenagem à memória do filho.
De volta à antiga casa, me vejo segurando uma Kalashnikov em perfeito estado de conservação, retirada de um guarda-roupas como quem pega um álbum de fotografias. Lembro que uma página cinza de um álbum de fotografias brasileiro mostra meu bisavô montado a cavalo, segurando um rifle, de chapéu e lenço amarrado no pescoço, provavelmente engrossando as fileiras de Minas Gerais na Revolução de 1930. A página está rasgada e rabiscada. A foto, como um polaróide, tem Amin Said Graize escrito pelo menos três vezes, em uma delas com os is de cabeça pra baixo. Terá sido uma criança, entre tantas ao longo dos quase 70 anos que a foto ficou guardada em uma gaveta da cristaleira da sala, a mesma cristaleira da qual retiro a chave de casa quando visito minha mãe; ou o avô, arriscando uma assinatura em português nos primeiros anos de Brasil, ou talvez já idoso testando a escrita e a memória que insistiam em falhar?
Por que ele não ficou e lutou aqui? A pergunta que essa viagem não tenta responder.
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