quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Com o pó viveremos


A GAZETA

Ronald Mansur

Quando aqui cheguei, no início de 1970, a Grande Vitória tinha mil 385.998 habitantes. Nessa época a nossa memória histórica física já estava quase que toda destruída. De lá para cá, o pouco, ficou menor, foi caindo pela força da especulação imobiliária. O centro das atenções era o complexo industrial que estava sendo instalado no Planalto de Carapina, que mais tarde iria dar as coordenadas do que somos hoje em termos de espaço geográfico, com reflexos no nosso espaço histórico e social.

Da memória histórica em termos de patrimônio físico, pouco resta. Ela existe na cabeça de poucos, que com o tempo vão embora. Vitória já caminha para completar 500 anos, uma das mais velhas cidades do Brasil, com uma população na faixa de 1 milhão e 600 mil habitantes e muito pouco em termos arquitetônicos que indique esta idade, porque os registros e os marcos dos que nos antecederam estão desaparecendo. Parece existir um horror com tudo que lembre História.

Há pouco estive em Penedo, Alagoas, que tem mais ou menos a idade de Vitória. Embora um aglomerado pequeno, mas possui um atestado físico que comprova a sua idade. Lá estive na Fundação Penedo, obra do médico Francisco Alberto Sales, que em dois casarões seculares mostra uma boa parte da História local. O que me chamou atenção foram duas frases deste genial brasileiro: "O passado não pode servir de âncora, mas de trampolim". "O passado é o ponto de apoio e a cultura, a alavanca".

Outro dia um amigo comentava que ele era do tempo que na Praia da Costa, em Vila Velha, tinha arrebentação muito forte em frente à Casa do Navio, que naufragou ao ceder espaço para um imenso prédio de 20 andares. A arrebentação desapareceu em função do avanço feito junto ao mar pelo complexo portuário de Tubarão, os aterros e ocupação humana nas áreas de mangues. A Praia de Camburi também sucumbiu nesta mesma época e pela mesma ação.

Nos anos recentes se fala em uma nova siderúrgica em Anchieta, onde hoje está o complexo da Samarco. Local onde os capixabas vão a praia e aqui recebem há décadas os mineiros. Daqui a pouco será saudade e muito pó de minério. Mais abaixo, em Presidente Kennedy, já se fala em outra siderúrgica e uma usina nuclear. Pobre Espírito Santo, ancoradouro de projetos poluidores.

O que ainda não se conseguiu a revogação e anulação da Lei da Natureza, que determinou há milhares de anos que o vento Nordeste corresse na maior parte do ano no sentido Porto de Tubarão para cima da Grande Vitória. É provável que algum gaiato apareça com um plano para desviar a direção dos ventos. Caso consiga, a população viverá feliz, porque poderá estará desobrigada a cheirar e levar para dentro de seus pulmões o gás tóxico e o pó de minério que insistem em atormentar a vida de todos.

Eles são democráticos, freqüentam com extrema habilidade as classes sociais, do miserável casebre até as casas e apartamentos dos que estão no topo da pirâmide social. O incomodo de hoje já foi denunciado há décadas. Mas a chegada do que se chama de progresso teve força maior e ganhou. O hoje é o resultado do ontem.  O incômodo de hoje vai ter reflexo mais adiante, na população atual e nas gerações que estão por vir.

Ninguém é ingênuo de imaginar que o mal será cortado pela raiz. A realidade econômica é muito mais forte do que imaginamos e sonhamos. Vamos conviver com o mal e com a raiz.

Ronald Mansur é jornalista.e-mail: ronaldmansur@gmail.com

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