quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Said Abdala: um sírio no interior de Alegre (ES). texto de Adilson Silva Santos

Said Abdala: um sírio no interior de Alegre (ES).
Said Abdala: a Syrian in the countryside of Alegre (ES)
Adilson Silva Santos*

Resumo: O objetivo deste artigo é
analisar os desdobramentos de denúncia
feita por um comerciante sírio contra um
inspetor de polícia em Santa Angélica,
interior do Município de Alegre, sul do
Espírito Santo. Trata-se de Said Abdala,
que acusou Ozório Varela de aconselhar
seus clientes a não pagarem o que deviam
em sua casa comercial. A fonte utilizada é
um inquérito policial disponível no
Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo (Apees), datado de 1921. A
hipótese é a de que pesou para a conclusão
do inquérito o fato de o acusado e as
testemunhas serem estabelecidos,
enquanto o denunciante era outsider.
Palavras-chave: Sírios. Estabelecidos.
freguês fregueses
Outsiders.
Abstract: The aim of this paper is to
analyze the consequences of a complaint
made by a Syrian trader against a police
inspector in Santa Angelica, within the
municipality of Alegre, south State of
Espírito Santo. It is Said Abdala who
accused Ozório Varela to advise their
clients not to pay what they owed on
Abdala’s home business. The source used
is a police investigation available in the
State of Espírito Santo Public Archive
(Apees) of 1921’s. Hypothesis is that
weighed completion of the investigation
the fact they are the accused and
witnesses established, while the
complainant was outsider.
Keywords: Syrians. Established.
Outsiders.

 Professor de História no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes). Mestre em História
(UFES). E-mail: adilson.santos@ifes.edu.br
MÉTIS: história & cultura – SANTOS, Adilson Silva. – jan./jun. 2015 171

A imigração sírio-libanesa para o Brasil e o Espírito Santo
Os primeiros sírios e libaneses começaram a chegar ao Brasil ainda
nos anos 70 do século XIX. Entre as razões que provocaram o surto
migratório, destacam-se fatores de ordem econômico-financeira que
desagregaram a economia de subsistência desses povos. Para Truzzi,
a melhoria dos transportes marítimos e terrestres ocasionou a importação
de bens manufaturados, minando a produção local de artesãos
independentes; o crescimento urbano também ensejou uma produção
agrícola comercial de maior escala, que deslocou as plantações de
subsistência. A indústria têxtil, em boa parte de caráter doméstico, não
resistiu à competição dos produtos importados. Além disso, a
combinação entre o crescimento populacional, uma estrutura agrária
pulverizada e solos semidesérticos estabelecia limites à incorporação de
filhos e respectivas famílias nas propriedades rurais, incentivando os
mais jovens à emigração. (2000, p. 316).

Acrescentam-se a esses fatores questões de natureza político-religiosa
ocasionadas pela desagregação do Império Otomano ou por disputas
fomentadas entre facções religiosas.

Não obstante isso, fazer dinheiro numa produção inimaginável para
os padrões locais exerceu profundo impacto sobre o equilíbrio nas aldeias.

As famílias passaram a planejar o envio de seus filhos temporariamente
à América como forma de resolver suas dificuldades financeiras, e muitos
vieram porque tinham parentes ou amigos e foram convencidos a migrar.
(TRUZZI, 2000).

Ao chegarem ao Brasil, depararam-se com um sistema de grandes
lavouras em tudo diferente do que conheciam e, com poucos recursos,
não podiam ser proprietários. Teriam de fixar-se como colonos ao longo
de, pelo menos, uma ou duas gerações para terem acesso a algum tipo
de propriedade rural que os mantivesse em suas atividades originais.
(TRUZZI, 2000). As condições de vida e trabalho dos operários também
não atraíam esses imigrantes. Por isso optaram pela mascateação.

Em contraposição a outras etnias, a imigração sírio e a libanesa não
foram subvencionadas: eles “vieram por conta própria, o que por eles é
referido orgulhosamente como prova inequívoca de um espírito altivo”.
(TRUZZI, 1991, p. 13). Geralmente, eram solteiros e pertenciam a
famílias de agricultores proprietários de pequenos lotes de terra,
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trabalhados e cultivados por toda a família. Pelo fato de serem solteiros
e quase sempre terem emigrado com a determinação de retornar à terra
de origem, depois de amealhar algum capital que os fizesse viabilizar a
vida, a maioria optou por uma atividade que os mantivesse na condição
de trabalhar somente para si, escapando das agruras da condição de
colono ou operário. Como vieram sem capital, essa atividade era a
mascateação. (TRUZZI, 2000). Segundo Campos (1987, p. 78), ao juntar
“capital suficiente, esses primeiros mascates, apelidados de “turcos”,
começaram a trabalhar por conta própria. No interior, abriam lojas e
armazéns em pontos estratégicos e, na capital, lojinhas e armarinhos”.

Ao se estabelecerem no comércio, iam ocupando o lugar de
comerciantes já estabelecidos, especialmente portugueses, fato
responsável por diversos conflitos, estigmas, preconceitos e estereótipos.

Em alguns momentos, as tensões entre sírios e libaneses e comerciantes
já estabelecidos, assim como entre sírios e libaneses e nacionais, acabavam
indo parar na Justiça. De acordo com Truzzi (1991, p. 385), embora
sofressem diversas formas de preconceito que abrangeram todo um
conjunto de imputações estereotipadas, variáveis ao longo de sua
assimilação, não é possível imaginar que isso pudesse representar barreiras
ao sucesso econômico dos membros da colônia.

Para Saletto, sírios e libaneses eram mais diferentes dos brasileiros
do que os imigrantes europeus, porque, sendo orientais, em quase tudo
diferiam dos nacionais. E ainda:
Certamente pareciam mais “estranhos” aos olhos da população local, o
que era reforçado pelo fato de serem pouco numerosos e urbanos,
formando pequenas colônias fechadas nas cidades. A estranheza
alimentava o preconceito contra eles. (2001, p. 2).

Outras questões envolvendo sírios e libaneses e nacionais também
se apresentam nos processos criminais e nos inquéritos policiais.

As interações entre os indivíduos que conduzem as relações de poder
entre o nós e os outros inevitavelmente são entremeadas por fios que em
intenso movimento de tensão e desigualdade constituem processos –
expressos, por exemplo, em negociação, queixas, assimilação. Estes
somente podem ser entendidos ao se considerar a interdependência
desses grupos e o desequilíbrio de poder com as tensões que lhe são
próprias. (DADALTO, 2011, p. 37).
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Os imigrantes italianos e portugueses, por exemplo, pela experiência
vivenciada, já haviam conseguido consolidar determinado capital social
e, em parte, econômico. Os grupos que por razões diversas não se
adequavam aos valores desses imigrantes e de seus descendentes
estabelecidos nas colônias sofreriam algum tipo de repreensão, de
retaliação, dada a sua condição desigual. Até porque, assevera Elias e
Scotson (2000), quando os estigmatizados começam a revidar, significa
que há mudança na relação de forças. (Apud DADALTO, 2011).

Aos sírios e libaneses foram impressas algumas marcas. Uma delas
foi a denominação turco ou turco de prestação, por exemplo. Os diversos
autores que tratam da imigração sírio e da libanesa concordam que o
termo turco a eles atribuído justifica-se porque a quase totalidade dos
imigrantes árabes que veio para o Brasil até a Primeira Guerra Mundial
vinha com passaportes turcos, já que a região estava sob o domínio do
Império Turco Otomano. (TRUZZI, 1991; 1997; KNOWLTON, 1961;
CAMPOS, 1987). De vez em quando, a palavra turco era usada em tons
pejorativos, com o intuito de ferir e humilhar, fazendo com que os
imigrantes se sentissem envergonhados e ofendidos ao serem confundidos
com seus opressores, responsáveis por sua emigração. (KNOWLTON, 1961).

Outra marca é a ideia de fazer qualquer negócio, elemento também
pejorativo ao qual se junta a suspeita dos casos de trapaça em que se
envolveram. (TRUZZI, 1997). Duas outras dificuldades para a reinvenção
das identidades sírio e libanesa no Brasil e no Espírito Santo são a questão
da língua e da cultura, conforme já afirmado no caso dos sírios de
Itapemirim. Inclusive, seus nomes precisaram ser, em alguns momentos,
aportuguesados. Para Dadalto
somavam-se às adversidades enfrentadas, as dificuldades com a língua
e a cultura. Dois ingredientes a adicionar mais estranhamento à interação
dos indivíduos nas regiões de fixação. Mas o futuro era objetivo comum
a assombrar e projetar os desejos de transformação que estrangeiros e
nacionais traziam encaixotados em suas malas e baús para a aventura
da Terra Sem Males – Auá Mbaê Porã, como assim era denominado o
Espírito Santo pelos tupi-guaranis. (2011, p. 28-29).

De acordo com Campos (1987), o maior contingente de imigrantes
libaneses chegou ao Espírito Santo pelo Rio de Janeiro, e o início dessa
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presença deu-se na região de Itapemirim, em decadência e produtora
de açúcar, mas que nela existia um importante porto por onde se exportava
a produção do sul capixaba e de onde chegavam os produtos importados.

Outras regiões capixabas em que as presenças sírio e libanesa foram
muito significativas são Vitória, Cachoeiro de Itapemirim e Alegre.

Vindos do Rio de Janeiro, chegavam à Barra de Itapemirim e, depois,
em barcas, percorriam o rio Itapemirim até a cidade de Cachoeiro,
atingindo as regiões de Castelo, Alegre e Guaçuí em lombos de burros.

De Minas Gerais em direção ao sul capixaba, chegavam pela estrada de
ferro que ligava Carangola a Cachoeiro, desembarcando nos principais
centros urbanos da região. (CAMPOS, 1987).

Um desses centros urbanos é Alegre, cidade localizada no sul do
Espírito Santo, região que, desde a segunda metade do século XIX,
caracterizou-se pelas grandes propriedades produtoras de café. Essa
produção sempre encontrou obstáculos para seu escoamento, mesmo
depois da chegada da estrada de ferro. Por conta disso, era necessário
utilizar tropas de burros para ajudar no escoamento.

É nesse cenário de intensa produção cafeeira, de relativo
desenvolvimento comercial e urbano e de implementação de vias de
comunicação que se desenrola o episódio que envolveu Said Abdala, um
negociante sírio, morador do Distrito de Santa Angélica. Sua queixa: os
conselhos de Ozório Pires Varela, inspetor de Polícia, para que os clientes
não pagassem as dívidas contraídas em sua casa comercial.

O caso Said Abdala
Era 3 de abril de 1921. Quatro testemunhas são ouvidas na
Delegacia de Polícia de Alegre. Motivo da oitiva: um homem de
nacionalidade síria, Said Abdala, denunciou o inspetor de Polícia do
Distrito de Santa Angélica, Ozório Pires Varela, de aconselhar seus
fregueses a não pagarem as dívidas que haviam contraído em seu
estabelecimento comercial. Ouvidas as testemunhas, o delegado concluiu
o inquérito da seguinte maneira: “Todas as testemunhas são clientes do
Sr. Said Abdalla e que o inspetor Ozorio Varella não tem aconselhado
alguém a não pagar suas contas.” (Processo n. 1.725, Cx. 759).

O episódio que envolveu Said Abdala e Ozório Pires Varela não é
um fato isolado na história do Espírito Santo, tampouco do Brasil. Há
inúmeros casos de sírios e libaneses que recorreram à Justiça para se
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defender, proteger-se e/ou para que seus direitos fossem garantidos.

Inclusive, há casos extremos de violência, como descreve Nara Saletto
(2001), na região da Vila de Itapemirim, em 1898,2
Espírito Santo. Entre as razões para o surgimento dessas tensões, por
meio das quais podem ser observadas intrincadas relações de poder
envolvendo esses imigrantes e nacionais e/ou imigrantes europeus,
destacam-se as relacionadas às diferenças culturais que os separam, a
conquista por parte desses imigrantes orientais do espaço de comerciantes
já estabelecidos e, não obstante isso, o fato de serem outsiders, conforme
destacam Elias e Scotson (2000).

Retomando o caso Said Abdala, quem eram as testemunhas e o que
disseram a respeito da acusação contra Ozório Pires Varela? A primeira
testemunha, Zeferino Coelho, era lavrador, casado e tinha 30 anos de
idade. Natural do Estado do Rio de Janeiro, Zeferino residia no Distrito
de Santa Angélica, era analfabeto e ao delegado afirmou que era
 também no sul do
freguês da casa de negócio do Sr. Said Abdalla ha mais de dois anos;
que actualmente deve aquele Sr. um resto de conta que pagará logo que
seja possível; que é vizinho do Sr. Ozorio, inspector de quarteirão e que
não se lembra de ter conversado com este sobre seus negócios com o Sr.
Said Abdalla; que nunca absolutamente foi aconselhado pelo Sr. Ozorio
Varella para que não pagasse ao Sr. Said Abdalla; que não lhe consta
que o Sr. Ozorio tenha tido tal procedimento para com outro qualquer
freguês do mesmo Sr. Abdalla. (Processo n. 1.725, Cx. 759).

A segunda testemunha, Laurindo Pinto Ferraz, era casado, tinha
50 anos de idade, lavrador, analfabeto. Morava em Santa Angélica, e
também oriundo do Estado do Rio de Janeiro. Ao ser inquirido pelo
delegado, disse:

Desde fevereiro próximo passado trabalhou para o Sr. Said Abdalla em
serviço de serragem e que ate hoje não acertou suas contas com aquele
Sr. por isso não sabe se lhe deve alguma cousa ou tem a receber; que é
vizinho do inspector Ozorio Varella, mas que nunca conversaram sobre
seu negócio com o Sr. Abdalla; que nunca siquer ouviu dizer por quem
quer que seja que Ozorio Varella tenha aconselhado a alguém para que
não pague ao Sr. Abdalla; que não soube se Ozorio Varella e Said
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Abdalla são inimigos um do outro; que nunca via eles frequentarem a
casa um do outro. (Processo n. 1.725, Cx. 759).

Já a terceira testemunha informou que
foi freguês da casa de negócio do Sr. Said Abdalla e até colono dele,
tendo lhe ficado a dever (40$000) quarenta mil reis que não pagou
ainda por ter o Sr. Said Abdalla aproveitado uma conta de (50$000)
cinquenta mil reis a maior a titulo de uma mudança que fizera dele
depoente para um sitio que o mesmo Sr. Abdalla tinha comprado e
para o qual foi elle depoente morar por convite delle Abdalla o qual lhe
prometeu fazer a condução de sua mudança gratuitamente; que ele
depoente não põe duvida nenhuma em pagar ao Sr. Abdalla os
(40$000) quarenta mil reis porque foram de gêneros fornecidos, mas
que não paga os (50$000) cinquenta mil reis [...] por ter ele Sr. Abdalla
lhe prometido fazer a mudança de graça porque era para um seu sitio;
que é vizinho do inspector Ozorio Varella, mas que com este não tem
tido conversa alguma sobre os negócios acima referidos. (Processo n.
1.725, Cx. 759).

De nome Francisco José Batista, era conhecido como Francisco
Dominciano. Tinha 28 anos, e, como as outras duas testemunhas, era
lavrador, casado, analfabeto e morador de Santa Angélica, mas,
diferentemente deles, era natural do Espírito Santo.

Uma análise do processo permite observar que as três testemunhas
ouvidas, excluindo-se a quarta, que é o próprio denunciado, têm um
perfil bastante parecido: são nacionais, lavradores, clientes de Said
Abdala, têm dívidas contraídas em sua casa comercial, são vizinhos do
inspetor Ozório Pires Varela, não sabem ler e escrever. Ozório Pires
Varela também era lavrador, 40 anos, casado e, assim como as duas
primeiras testemunhas, era natural do Rio de Janeiro, ou seja, são
coincidências que revelam certa solidariedade entre ambos.

Seus depoimentos também são muito parecidos: as duas primeiras
testemunhas disseram nunca terem sido aconselhadas por Ozório Pires
Varela a não pagarem o que deviam a Said Abdala; a terceira disse que
nunca conversou com ele sobre essa questão. Entretanto, uma análise
detida dos depoimentos traz alguns elementos importantes: Zeferino
disse “Que não lhe consta que o Sr. Ozorio tenha tido tal procedimento
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para com outro qualquer freguês do mesmo Sr. Abdalla”. Laurindo firma
que “não soube se Ozorio Varella e Said Abdalla são inimigos um do
outro; que nunca via eles frequentarem a casa um do outro”. Já Francisco
assevera que “o inspector Ozorio é um homem calmo e que não consta
ter ele procedimento de homem valentão e brigador”. (Processo n.
1.725, Cx. 759).

Essas observações parecem querer apresentar um perfil bastante
positivo do inspetor Ozório Pires Varela: é um homem calmo, não é
valentão ou brigador, tampouco inimigo de Said Abdala. Assim, jamais
poderia ser procedente a suspeita que recaía sobre ele. Em contraposição,
eis o perfil do acusador: sírio, estrangeiro e negociante sobre quem pesam
os estereótipos mais nocivos, além de credor de todas as testemunhas.

Inclusive, com uma delas, tratou algo e não cumpriu. Eram mínimas as
chances de que sua queixa fosse julgada procedente. Para além de uma
solidariedade entre as testemunhas e o acusado, há maior coesão entre
elas, entre seus discursos e, de acordo com Elias e Scotson,
um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa
integração diferencial contribui substancialmente para seu excedente
de poder; sua maior coesão permite que esse grupo reserve para seus
membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de
outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e excluir dessas posições os
membros dos outros grupos — o que constitui, essencialmente, o que
se pretende dizer ao falar de uma figuração estabelecidos – outsiders.
(2000, p. 22).

Os estabelecidos, esses nacionais, lavradores, vizinhos, naturais de
um mesmo estado, em sua maioria, apresentam uma coesão que os
protege contra a ofensiva de um outsider que, rechaçada sua demanda,
permanece estigmatizado e, por conseguinte, excluído. E, ainda, “um
grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado
em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”. (ELIAS;
SCOTSON, 2000, p. 23).

Enquanto isso ocorre, o estigma de desonra coletiva imputado aos
outsiders pode prevalecer (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 23). Por isso, a
exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram
armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e
afirmasse sua superioridade. (ELIAS; SCOTSON, 2000). Atribuir-lhes
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características de piores, de ruins e anônimos contribuiria para enfraquece-
lo e desarmá-lo, assim como para reforçar a imagem dos estabelecidos
como os melhores, os bons.

Conforme assinala Goffman (1988), sendo a característica distintiva
do estigmatizado conhecida ou imediatamente evidente, no caso de Said
Abdala, o fato de ser estrangeiro, de nacionalidade síria, está-se lidando
com o desacreditado. Essa condição de desacreditado reforça a
impossibilidade de êxito em sua denúncia. Nesse exemplo de estigma,
como em outros, encontram-se
as mesmas características sociológicas: um indivíduo que poderia ter
sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço
que pode-se impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra,
destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus.

Ele possui um estigma, uma característica diferente. (GOFFMAN, 1988,
p. 7-8).
Ozório Pires Varela, a quarta testemunha a ser ouvida, disse ao
delegado que não sabia nada a respeito da acusação; “que apenas alguns
freguêzes do Sr. Abdalla lhe tem dito que tendo este se mudado do
lugar onde morava e negociava, não acertaram contas com ele; que o Sr.

Abdalla mudou-se para o lugar Prata no dia 29 de março proximo
passado”. (Processo n. 1.725, Cx. 759). Reiterando a conclusão do
inquérito, todas as testemunhas são clientes do Sr. Said Abdalla e que o
inspetor Ozorio Pires Varella não tem aconselhado as pessoas a não
pagarem suas contas.
Cabe dizer também que, no inquérito, não aparece nenhuma
informação detalhada sobre Said Abdala. Trata-se de silêncio documental
que, para além da praxe policial no que diz respeito à produção de
inquéritos da época, pode ser revelador de negligência com a causa do
denunciante, em virtude de ele ser um estrangeiro, muitas vezes não
muito bem-visto por brasileiros da época. Aos sírios e libaneses em geral,
foram atribuídas algumas marcas indeléveis, pelo menos num primeiro
momento: a ideia do “turco à prestação”, ou “fazemos qualquer negócio”
e os casos de trapaça em que se envolviam. “Ao defenderem-se,
lambujavam-se, mostravam que, de certa forma, o assunto fazia sentido,
compartilhando acusações e, como sempre nesses casos, fornecendo uma
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base real para o desenvolvimento de visões estereotipadas, do
preconceito”. (TRUZZI, 1991, p. 73-74).

Não cabe, aqui, saber e/ou buscar quem estava errado, tampouco
quem tinha razão, embora a fonte, mesmo interrogada, não tenha
condições de dizer isso. Para Barros (s/d, p. 13), importante “é ter em
vista que, nestes casos, é de menor importância chegar a conclusões
sobre a [...] a culpabilidade do réu. A função do historiador não é
desvendar crimes – tarefa do delegado de Polícia – nem tampouco emitir
julgamentos sobre o mesmo”. Procurou-se, entretanto, observar as
intrínsecas relações de poder manifestadas tanto nos discursos das
testemunhas quanto na conclusão do delegado, pelo fato de que os
nacionais, estabelecidos, invalidaram, portanto, a acusação do sírio, o
outsider.

Vale observar, também, que a dialogicidade desse tipo de fonte aqui
utilizada, o inquérito policial, em virtude de seu caráter polifônico,
permitiu apreender detalhes que, muito provavelmente, passariam
despercebidos, ou a eles, noutra situação, não seria dada importância.

Considerações finais
O episódio envolvendo Said Abdala, um negociante residente no
Distrito de Santa Angélica, interior do Espírito Santo, é elucidativo a
respeito do que ocorreu em diversos lugares do Brasil, onde havia um
imigrante sírio e/ou libanês. Entretanto, a ausência de fontes e/ou de
pesquisas históricas não permite, muitas vezes, dar voz a personagens
como esses.

A acareação da denúncia por parte de Francisco Souza, delegado de
Polícia de Alegre, demonstrou que, para além de culpados e inocentes,
havia um importante jogo de poder envolvendo nacionais e um imigrante
de nacionalidade síria, estabelecidos e outsider, respectivamente.
Conforme salientam Elias e Scotson (2000, p. 26), entre os estabelecidos,
“cerrar fileiras certamente tem a função social de preservar a superioridade
de poder do grupo”.

Sobre a oitiva das testemunhas, todas nacionais, lavradores e vizinhas
do acusado, o que se observa no processo é uma solidariedade entre elas
e o acusado, os estabelecidos, no sentido de descredibilizar a queixa do
sírio, o outsider. Em uma relação de poder desigual, reforçada pela inação
da Polícia, qualquer possibilidade de a queixa do sírio ter resultado
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diferente é bastante improvável. Tratava-se de um desacreditado, nas
palavras de Goffman (1988).

Assim, o resultado do inquérito em favor de Ozório Pires Varela, o
denunciado, e as características que lhe são imputadas pelas testemunhas
ouvidas pelo delegado, assinalam forte solidariedade responsável por
descredibilizar a denúncia de Said Abdala.

Notas
1 Utilizo a nacionalidade síria para esse
imigrante porque é assim que consta no
inquérito policial analisado. Entretanto,
informações existentes no Instituto
Histórico e Geográfico de Alegre dão
conta de que esse sobrenome é de origem
libanesa, e não síria.

2 Remeto os leitores a Saletto, Nara.
Itapemirim contra os sírios: jacobinismo
em versão capixaba? In: SIMPÓSIO DE
HISTÓRIA: AUTORITARISMO,
REPRESSÃO E MEMÓRIA, 13.,
2001, Vitória. Anais... Vitória: Ufes,
2001. O texto narra o episódio de uma
tentativa de expulsão de um grupo de
sírios da Vila de Itapemirim, em 1898. A
autora trabalha com a ideia de que o que
motivou esse movimento de expulsão
foram as ideias nacionalistas vigentes na
primeira década republicana, cuja
corrente político-ideológica seria o
jacobinismo.

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