Quantas e quantas madrugadas atravessei na companhia das músicas de Geraldo Vandré.
Tempos ásperos e carregados de esperança e angústia.
O ritual sagrado de colocar quatro discos na velha vitrola e deixar o tempo correr, foi repetido muitas vezes. Trágicas décadas de 60 e 70.
Uma época negra de nossa História. Um tempo que experimentamos situações especiais de solidariedade, mas também uma época de contínuo isolamento das pessoas. Situação certamente vivida por muitos iguais.
Ao som de para não dizer que não falei flores, estávamos mergulhados na longa noite do regime militar e dos seus fiéis parceiros da sociedade civil. Uma composição escudada na segurança nacional. Tendo como inimigos os subversivos e os perigosos comunistas.
Vou como quem vai chegar, dizia outra canção, funcionando com um fino e tênue alento para os sonhos da época. Esperança com angústia. Certeza de que todo ignorante é sempre mais feliz. Falava ainda para levarmos a vida cantando a esperança que um dia viria. Uma certeza de que o nosso canto não seria em vão. Tudo viria ter um fim, algum dia...
Tempos de angústia que uma geração viveu e amargou, que vez por outra era sublimada por atos de coragem de muitos. Hoje vemos como atos de bravura dos que ficaram pela estrada.
Noites duras. Dias pesados para serem levados adiante. Tempos de manipulação de toda Nação, enganada pelo milagre brasileiro, aquele que primeiro iria fazer o bolo, para depois reparti-lo. Hoje a população espera o convite para participar da festa, mas a festa já aconteceu, com poucos convidados.
Todos embrutecemos e esquecemos a alegria. Um banho de melancolia na utopia sadia dos pequenos grupos. O tempo correu e correu muita dor nas noites escuras da ausência da liberdade e do reinando do arbítrio. Os anos fluíram e hoje, 1996, Geraldo Vandré voltou, de forma moderna, em CD. Voltamos a ouvi-lo com a esperança de sempre. A angústia foi substituída pelo desafio de um novo tempo que temos pela frente.
Agora o horizonte é visível. Convite ao trabalho para reconstruir a Nação que teve e ainda tem o seu povo avacalhado por pessoas e grupos, que permanecem ativos, interpretando o papel... continuar em cena.
O tema atual é a esperança com desafio, para qual todos estão convidados a participar. Valeu a pena o tempo passado, mesmo tendo de andar escondido dentro de nós mesmos e ter visto muitos sofrerem na pele e no corpo a mão pesada do dominador implacável... A omissão não vale mais, sob hipótese alguma. Antes as justificativas poderiam ocorrer, porque eram corretas e plenamente aceitas.
Aos que passaram pelo túnel negro do tempo, em frente.
Aos que foram apiados da rota da vida, a nossa homenagem.
Aos que a cada dia entram na linha da miséria e perambulam pelos campos e pelas ruas das cidades pequenas e grandes, muitos enlouquecidos pela fome, produto de anos e anos de abandono, lamentavelmente este filme prossegue... Cabe a cada um imaginar e colocar em prática um novo filme.
Volto ao embalo das canções de Vandré, numa situação diferente dos tempos ásperos... Hoje os que tem pouco, são muito mais e com muito menos. A esperança continua. A angústia foi substituída pelo desafio de materializar o sonho e a utopia. Bem vindo Geraldo Vandré, continue a embalar nossos sonhos...
Ronald Mansur, 13 de maio de 1996;
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