domingo, 8 de outubro de 2017

Por aqui não passa ninguém de Cachoeiro. texto de Marco Aurélio Moraes Rettore, fazendo resgate histórico de sua Família.

Por aqui não passa ninguém de Cachoeiro
Em 1891, enquanto o navio Mentana singrava as águas ainda calmas do Atlântico, por aqui quem dava as ordens era o Marechal Deodoro, a república havia sido recém proclamada por ele mesmo e as espadas tomavam conta do poder. Tanto que ainda neste mesmo ano, seu companheiro de farda, Floriano Peixoto iria se tornar o segundo presidente do Brasil.
Era inverno e o vento devia soprar frio na barra do rio Itapemirim, no dia 18 de julho de 1891 chegava ao porto localizado naquelas terras Agostino Rettore, com 57 anos. Ele trazia em sua bagagem pouca coisa além de esperança por dias melhores. Junto com ele sua esposa dona Catterina Marangoni, de 45 anos e dois filhos pequenos: uma menina de 10 anos chamada Maria Virginia e o pequeno Giovanni com 8 anos.
Não consigo imaginar o quanto foi dura e longa esta viagem. Desde a saída da pequena comunidade de Borgoricco, província de Pádua, no noroeste da Itália. O Brasil precisava de braços para a sua lavoura, carente em função do livramento da escravatura e da má administração pública, que já era comum desde a época do império.
Mas a viagem ainda não havia terminado para os Rettore, um barco a vapor ainda os levaria pelo rio Itapemirim para o interior do estado e em data que não sei precisar chegaram a cidade de Cachoeiro. Os imigrantes eram alojados em um galpão, no local onde depois foi construída a fábrica de tecidos, antes de serem conduzidos à uma fazenda para trabalharem na agricultura.
Não se sabe muito bem quando, mas Agostino Rettore faleceu pouco depois de sua chegada, talvez devido as mazelas que se propagavam nos navios e das condições pouco salutares que encontravam ao chegarem por aqui. Restou a Nona Katina, como era chamada carinhosamente dona Catterina, à condução da família.
O menino Giovanni abraçou o lugar como dele e logo Sante Giovanni Rettore, como escrito em sua certidão de nascimento, se tornou João Rettore. Nascido em 10 de março de 1883, tempo de guerra civil, em função da unificação italiana, ele veio encontrar nas terras quase virgens da bacia do rio Itapemirim o local perfeito para ser feliz e fincar laços de família. Casou-se com a também Italiana Maria Facina, em 12 de maio de 1907 e a vida começou.
Trabalhou como agricultor para algum fazendeiro da época e foi até dono de “venda”, raiz comerciante pouco conhecida na família. Mas era a agricultura sua grande arte, seu primeiro sítio foi lá em Cachoeira Alta, localidade conhecida como Córrego de Sant’Ana. Dizem que estas terras ficavam entre as antigas estações de Soturno e Cobiça da Lepoldina. Região agrícola que circundava a velha Cachoeiro.
Por ali nasceram quase todos seus oito filhos, menos Elzira a mais nova, com a qual compartilho a autoria destas histórias. O primeiro foi Augustinho, que morreu de parto, como diziam na época, o segundo foi Dionizio, que faleceu ainda jovem. Depois veio o meu avô Nilo em 1911, que eu imaginava ser o mais velho, depois Elpídio, o alfaiate; Maria, a tia Mariquina; Pertondina, a tia Dina; Hortência e finalmente a tia Zirinha, em 1926. Esta já nascida na chácara da rua Amazonas, local carinhosamente conhecido como Buraco do Sapo.
A propriedade da rua Amazonas é uma história a parte, filhos e netos viveram infância e juventude por entre suas árvores, pomar, horta, galinheiro e chiqueiro. Uma grande casa acolhia a família, parentes e amigos. Eram quatro quartos, cozinha com fogão a lenha e uma grande sala circundada por cadeiras e um grande relógio de parede que marcava o tempo da época.
A área externa era imensa, além da parte baixa, subia morro acima até fazer divisa com as terras do meu também bisavô Alípio Gomes de Moraes, onde hoje fica a antiga rua treze de maio. Depois veio a linha do trem da Leopoldina e a chácara foi desmembrada e, talvez, parte desapropriada. Todos se lembram da vida em profusão no entorno da casa: o pé de carambola era grandioso, certamente o rei do lugar, mas tinha também manga, biriba e o pé de abiu do vizinho, que era degustado pela criançada.
A horta era meio de subsistência, plantada com manejo orgânico, ela era irrigada pelas águas do córrego que corria forte no fundo da propriedade. Toda hortaliça colhida era vendida em grandes e pesados cestos pelas principais ruas de Cachoeiro. Local de natureza bruta, cobras de grande porte eram visitantes comuns ao local, inclusive adentrando a casa, mas a vovó Maria as enfrentava com o cabo da enxada. O espirito valente e severo da vó era conhecido por todos.
Seu João Rettore pouco estudou e trouxe da Itália um dialeto difícil de entender e apesar das mãos rudes que a lida da roça o proporcionava, tinha uma caligrafia impecável, de dar inveja a muito doutor. Gostava de contar história e ria delas muito antes da conversa começar – era homem de riso fácil. A fé cristã era outro compromisso levado muito a sério por ele, nunca faltava as missas de domingo, sempre rezadas em latim e repetidas minunciosamente pelo velho italiano, vestido com seu paletó de terno e camisa fechada até o último botão.
Devoto de Nossa Senhora do Carmo, trazia um coração sempre disposto a ajudar. Conta a história que por ocasião de morte de alguma “dama” da Basiléia, por vezes ajudava nas custas do enterro, arrecadando um aqui e um outro ali. Conhecido na cidade era dono de parte das terras onde hoje funciona o Centro de Saúde, na época permutadas com a prefeitura.
Mais velho se apegou aos netos e gostava de recebê-los em sua casa. Brincalhão e bajulador colocava as frutas para gelar no fundo do córrego para os netos comerem bem fresquinhas. Deixava que dormissem em sua cama macia, com colchão feito de pena e capim. Eu, bisneto, tenho uma vaga lembrança da casa e do biso João. Do portão que dava para a linha do Rio e a descida de terra que levava à porta da sala.
Mas João Rettore não viveu os seus últimos anos por ali. Pelos idos de 1967 mudou-se para Volta Redonda junto com vovó Maria, em busca de amparo para a velhice e as doenças que chegavam com a idade. Baixinho e magro tinha uma força desproporcional ao corpo franzino. Mas agora havia se transformado em outro homem, os olhos perderam o brilho de antes e a conversa já não vinha fácil.
O desgosto de deixar sua casa foi muito grande, tanto que 10 meses depois ele deu um jeito de voltar. Em 19 de outubro de 1968 faleceu e voltou para o lugar de coração e devoção. Lugar onde ele sentia o cheiro da terra e de suas plantas. Onde era conhecido e reconhecido pelo trabalho, simplicidade e humildade. Longe de casa ele finalizou dizendo: “por aqui não passa ninguém de Cachoeiro”.
Marco Aurélio Moraes Rettore
Vitória, 06 de outubro de 2017

Nenhum comentário:

Postar um comentário